segunda-feira, outubro 27, 2025

O Trabalho como Mercadoria Especial: Por que Só o Trabalho Cria Valor em Karl Marx

 A análise de Karl Marx sobre o capitalismo parte de uma questão simples e revolucionária: de onde vem o lucro, se as mercadorias são trocadas por equivalentes?

A resposta conduz à descoberta de uma mercadoria singular — a força de trabalho —, cuja particularidade é ser a única capaz de criar valor novo.
Enquanto todas as demais mercadorias apenas transferem o valor nelas contido, a força de trabalho produz valor adicional.

Como observa David Harvey, essa é “a grande virada teórica de O Capital”: “Marx mostra que a força de trabalho é uma mercadoria peculiar. O uso dessa mercadoria cria mais valor do que o necessário para reproduzi-la. É aqui que nasce o mais-valor e, portanto, o capital.” (Para Entender O Capital, p. 79)

A lei do valor e o trabalho humano abstrato

Para Marx, toda mercadoria tem duas dimensões: valor de uso e valor de troca.
O valor de troca, ou simplesmente valor, é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção.
Esse tempo é a medida do trabalho humano abstrato — o dispêndio de energia humana indiferenciada, que constitui a substância do valor.

“O valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário à sua produção.” (O Capital, Livro I, cap. 1)

Contudo, para que o valor exista, o trabalho deve aparecer como trabalho social — isto é, dentro de uma sociedade onde os produtos do trabalho assumem a forma de mercadorias.
Logo, o valor não é uma categoria técnica, mas social: expressa a forma como o trabalho humano é organizado e reconhecido no capitalismo.

As mercadorias comuns: portadoras de valor, não criadoras de valor

Todas as mercadorias — máquinas, matérias-primas, ferramentas — são produtos de trabalho anterior.
Quando entram no processo produtivo, elas não criam valor novo, apenas transferem ao produto final o valor que já possuem.

Por exemplo:

  • O tear transfere ao tecido parte do seu próprio valor (à medida que se desgasta).

  • O algodão transfere ao tecido o valor do trabalho contido nele.

Em ambos os casos, o valor é reproduzido, não ampliado.
Nenhuma dessas mercadorias tem a capacidade de gerar mais valor do que contêm.

“O trabalho passado, incorporado nos meios de produção, só reaparece no produto. Ele não cria valor novo.” (O Capital, Livro I, cap. 5)

A força de trabalho: uma mercadoria especial

Entre todas as mercadorias, existe uma singular: a força de trabalho, isto é, a capacidade humana de trabalhar.
Ela também tem um valor, determinado pelo tempo de trabalho necessário para sua reprodução — alimentação, moradia, vestuário, transporte, educação, saúde, etc.
Esse é o conteúdo material do salário: o capitalista paga ao trabalhador o equivalente ao custo de manter e reproduzir sua força de trabalho.

Mas — e aqui está o ponto decisivo — o valor de uso dessa mercadoria é o trabalho vivo, e o seu uso cria valor novo.

“O valor de uso da força de trabalho consiste em produzir valor, e até mais valor do que ela mesma possui. Este é o segredo da produção capitalista de mais-valor.” (O Capital, Livro I, cap. 6)

O uso da força de trabalho e a criação do mais-valor

Durante o processo de produção, o trabalhador:

  1. Reproduz o valor de sua força de trabalho (trabalho necessário).

  2. Cria valor excedente (trabalho excedente ou sobretrabalho).

Por exemplo:

  • Em 4 horas, o trabalhador cria valor equivalente ao seu salário diário.

  • Nas 4 horas seguintes, continua produzindo, mas sem receber por isso.

  • O valor criado nesse período excedente é o mais-valor, apropriado pelo capitalista como lucro.

Assim, o capitalista paga o valor da força de trabalho, mas se apropria do valor de uso dessa mercadoria, que é a capacidade de gerar valor.
Esse é o núcleo da exploração capitalista.

“O valor da força de trabalho é pago, mas o seu valor de uso consiste precisamente em criar valor maior do que o seu próprio valor.” (O Capital, Livro I, cap. 6)

Harvey destaca que essa é uma relação social, não um roubo visível:

“O capitalista paga um preço justo pela força de trabalho. A exploração ocorre não na troca, mas no uso dessa mercadoria.” (Para Entender O Capital, p. 80)

O trabalho como fonte exclusiva de valor

A distinção entre trabalho vivo e trabalho morto (incorporado nas mercadorias) é central:

  • O trabalho morto (máquinas, matérias-primas) apenas transfere valor.

  • O trabalho vivo cria valor novo — e, portanto, é a única mercadoria que aumenta o valor total da sociedade.

“O trabalho é a substância e a medida imanente do valor. Nenhuma máquina, por perfeita que seja, cria valor; apenas o transfere.” (O Capital, Livro I, cap. 7)

David Harvey resume:

“O capital pode comprar qualquer mercadoria, mas só a força de trabalho o valoriza. O dinheiro se transforma em capital apenas porque compra a capacidade humana de criar valor.” (Para Entender O Capital, p. 82)

Implicações sociais e políticas

A descoberta de Marx tem consequências profundas:

  1. O lucro capitalista não provém de “vender mais caro”, mas da apropriação sistemática de trabalho não pago.

  2. O trabalho assalariado é, portanto, uma forma de exploração disfarçada por relações contratuais “livres”.

  3. O capital depende estruturalmente da força de trabalho — ela é a fonte da valorização.

  4. Toda inovação tecnológica que reduz o trabalho vivo minando a base da valorização tende a provocar crises (como Marx antecipa nos Grundrisse).

Apenas o trabalho é a mercadoria que cria valor porque seu valor de uso é produtivo de valor novo.
Todas as demais mercadorias participam do processo produtivo, mas apenas o trabalho vivo adiciona valor ao capital.
É essa capacidade específica que transforma o trabalhador em objeto de exploração e o dinheiro em capital.

Marx descobre, assim, o “segredo da produção capitalista”:

“O capitalista compra força de trabalho para consumir seu valor de uso: o trabalho. E, consumindo-a, cria mais-valor, valor que não lhe custa nada.” (O Capital, Livro I, cap. 6)

Harvey conclui:

“O capital é uma relação social fundada na mercantilização da força de trabalho. É porque o trabalho, e apenas ele, cria valor, que o capital busca incessantemente explorá-lo, estendendo a jornada, intensificando o ritmo, ou barateando sua reprodução.” (Para Entender O Capital, p. 83)

O trabalho, portanto, não é apenas uma mercadoria entre outras: é a mercadoria fundante, sem a qual o capitalismo não pode existir — o coração vivo do valor.


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