terça-feira, outubro 21, 2025
O Fetichismo da Mercadoria: a Inversão das Relações Sociais em Marx e a Leitura Contemporânea de David Harvey
O conceito de fetichismo da mercadoria é um dos momentos teóricos mais profundos de O Capital de Karl Marx. Apresentado no capítulo primeiro, ele encerra a análise da mercadoria e marca a passagem da crítica da economia política à crítica da ideologia que sustenta o capitalismo.
Para Marx, o fetichismo é o fenômeno pelo qual as relações sociais entre pessoas assumem a forma de relações entre coisas, criando a ilusão de que o valor é uma propriedade natural das mercadorias, e não uma expressão social do trabalho humano. David Harvey, em Para Entender O Capital, observa que Marx, ao formular o conceito, “coloca o dedo na ferida da consciência moderna”, pois mostra que o capitalismo produz não apenas mercadorias, mas também modos de ver, sentir e pensar, moldando a própria percepção da realidade social.
Este artigo tem por objetivo explicitar, de forma detalhada, o sentido do fetichismo da mercadoria em Marx e, em diálogo com Harvey, explorar sua relevância como chave de leitura da vida social sob o capitalismo contemporâneo.
2. A gênese do fetichismo da mercadoria
Em O Capital, Marx inicia sua análise da sociedade burguesa pela mercadoria, “a célula econômica” do sistema capitalista. Cada mercadoria possui uma dupla natureza: é, ao mesmo tempo, valor de uso (sua utilidade concreta) e valor de troca (a expressão social do trabalho humano nela incorporado).
No entanto, no processo de troca, os produtos do trabalho aparecem não como resultados do trabalho humano social, mas como coisas que possuem valor “por natureza”. É nesse ponto que surge o fetichismo. Marx escreve:
“O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste simplesmente no fato de que nela o caráter social do trabalho dos homens aparece como caráter objetivo dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que lhes pertencem por natureza.” (O Capital, Livro I, cap. 1)
Assim, a mercadoria parece dotada de vida própria. O que é, em essência, uma relação entre pessoas mediada por coisas, aparece como uma relação entre coisas mediada por pessoas. O valor — que expressa o tempo de trabalho humano socialmente necessário à produção — se manifesta como uma propriedade material da mercadoria, escondendo as condições sociais de sua produção.
3. A analogia religiosa: a inversão sujeito-objeto
Marx compara o fetichismo da mercadoria ao fetichismo religioso. No campo da religião, os produtos da mente humana — os deuses — tornam-se entidades independentes, que dominam e governam seus criadores. No capitalismo, o mesmo ocorre: os produtos do trabalho humano — as mercadorias — adquirem autonomia e passam a ditar o comportamento dos homens.
“É o mesmo que ocorre no mundo religioso: os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relações entre si e com os homens.” (O Capital, Livro I, cap. 1)
Essa inversão é o núcleo do fetichismo: o mundo social aparece de cabeça para baixo. As relações sociais, em vez de serem reconhecidas como fruto da atividade humana, são percebidas como forças exteriores, objetivas, dotadas de leis “naturais”. Assim, o mercado, os preços, o dinheiro e o capital aparecem como entidades autônomas, com vontade própria, diante das quais os indivíduos parecem impotentes.
4. A leitura de David Harvey: o fetichismo como forma de dominação
David Harvey enfatiza que o fetichismo não é apenas uma “ilusão ideológica” ou uma “falsa consciência”, mas uma realidade socialmente produzida. Ele escreve:
“O fetichismo é um modo de vida. É a maneira como o mundo do capital realmente se apresenta a nós — um mundo no qual as relações sociais são mediadas por coisas, e não diretamente entre pessoas.” (Para Entender O Capital, vol. 1, p. 63)
Para Harvey, o fetichismo tem uma base objetiva: ele decorre da forma social específica que o trabalho assume no capitalismo. Como os produtores estão separados e só se relacionam por meio da troca de mercadorias, as relações entre eles necessariamente aparecem como relações entre coisas. Portanto, o fetichismo não é apenas engano, mas a forma normal e inevitável de percepção no mundo capitalista.
Harvey reforça:
“O fetichismo é a aparência inevitável de um mundo em que o trabalho social é mediado pelo mercado. Por isso, não se trata apenas de uma distorção ideológica; é uma condição prática da vida sob o capital.” (Para Entender O Capital, cap. 3)
5. Fetichismo, valor e forma social
Para Marx, a origem do fetichismo está na própria forma de valor. Quando o trabalho humano assume a forma de valor, ele perde seu caráter humano e passa a existir como qualidade das coisas. Assim, a mercadoria contém uma “forma social” que mascara sua origem.
Marx explica que o fetichismo é inevitável enquanto os produtos do trabalho forem produzidos para o mercado:
“O fetichismo adere ao mundo das mercadorias desde o momento em que a produção de mercadorias se torna forma geral da produção social.” (O Capital, Livro I, cap. 1)
Harvey observa que essa inversão não é apenas teórica, mas vivida cotidianamente. No mercado de trabalho, por exemplo, o trabalhador se relaciona com o capitalista através da mercadoria “força de trabalho”. Ele vende sua energia vital como coisa, e seu próprio corpo se torna mercadoria. O fetichismo, portanto, não é um erro de percepção individual, mas uma forma social objetiva de alienação.
“O fetichismo é o processo pelo qual o trabalho vivo se confronta com os produtos de seu próprio trabalho — o dinheiro, o capital, as mercadorias — como poderes independentes que o dominam.” (Harvey, Para Entender O Capital, p. 65)
6. O fetichismo como fundamento da alienação moderna
O fetichismo da mercadoria é também a base da alienação moderna. O trabalhador não reconhece a si mesmo no produto do seu trabalho; vê diante de si forças sociais objetivas — o mercado, o dinheiro, o capital — que regulam sua vida e o submetem a leis aparentemente naturais.
Harvey nota que esse processo se reproduz em escala ampliada nas sociedades contemporâneas, dominadas pelo consumo e pelo crédito:
“Vivemos em um mundo no qual as relações sociais são mediadas por cartões, contratos e preços, e o poder social aparece sob a forma de cifras e taxas de juros.” (Para Entender O Capital, cap. 4)
Assim, o fetichismo não desapareceu com a modernidade financeira; ao contrário, tornou-se mais sofisticado. O capital, que para Marx já aparecia como “valor que se valoriza”, assume hoje formas ainda mais abstratas — derivativos, ativos financeiros, algoritmos —, radicalizando a autonomização das coisas sobre os homens.
O conceito de fetichismo da mercadoria permite compreender por que o capitalismo é não apenas um modo de produção, mas uma forma específica de consciência e de vida social.
Para Marx, o fetichismo revela como as relações sociais entre os homens aparecem invertidas: o que é produto da ação humana surge como poder autônomo que domina seus criadores. Para Harvey, essa inversão não é mero engano, mas a maneira real pela qual o mundo do capital se organiza e se apresenta.
O fetichismo, portanto, é o mecanismo ideológico-estrutural que naturaliza o capitalismo: faz parecer que o valor, o dinheiro e o mercado são “coisas”, quando são, na verdade, formas sociais de relação entre pessoas.
Compreender o fetichismo é, assim, o primeiro passo para desfetichizar o mundo — ou seja, para revelar que aquilo que parece natural e inevitável é, na verdade, uma criação histórica e transitória do próprio trabalho humano.
A Contradição entre Valor de Uso e Valor de Troca como Fundamento da Forma-Dinheiro em Karl Marx
Em O Capital, Karl Marx parte da análise da mercadoria para desvendar os fundamentos do modo de produção capitalista. A mercadoria, “forma elementar da riqueza burguesa”, é o ponto de partida porque nela se condensam as contradições que estruturam a sociabilidade capitalista. A mais fundamental dessas contradições é a que se estabelece entre valor de uso e valor de troca, cuja dinâmica interna conduz necessariamente à formação da forma-dinheiro — o equivalente universal das mercadorias.
A passagem da mercadoria ao dinheiro não é, em Marx, um episódio técnico ou histórico acidental; é uma necessidade lógica e social do próprio desenvolvimento das trocas de mercadorias. O dinheiro surge como a solução — parcial e aparente — da contradição entre a utilidade concreta das coisas e o valor social abstrato nelas incorporado.
A duplicidade da mercadoria: valor de uso e valor de troca
Toda mercadoria, ensina Marx, apresenta uma dupla natureza: é simultaneamente valor de uso e valor de troca.
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O valor de uso refere-se à utilidade concreta do objeto, à sua capacidade de satisfazer uma necessidade humana.
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O valor de troca, por sua vez, expressa a proporção em que uma mercadoria pode ser trocada por outras, isto é, a quantidade de trabalho humano abstrato socialmente necessária à sua produção.
Essa duplicidade não é apenas uma característica formal: ela encerra uma contradição real. O produtor de mercadorias não trabalha para o próprio consumo, mas para o mercado. Assim, o produto de seu trabalho tem de ser valor de uso para o outro e valor de troca para si mesmo. O que o move não é a utilidade de seu produto, mas o reconhecimento social do trabalho que ele contém — seu valor.
Marx formula com precisão essa tensão ao afirmar que:
“A mercadoria deve realizar-se como valor antes de poder realizar-se como valor de uso.” (O Capital, Livro I, cap. 2)
A contradição e o limite da troca direta
Na circulação simples, ou escambo, a troca depende de uma coincidência dupla: A deve querer o produto de B, e B deve querer o produto de A. Essa exigência torna o sistema extremamente limitado e instável. O valor de troca de cada mercadoria precisa ser medido de forma universal, mas, na troca direta, cada mercadoria só expressa seu valor relativamente a outra — nunca de modo geral.
Essa impossibilidade de expressão universal do valor revela que o próprio ato de troca contém uma contradição não resolvida: a mercadoria é socialmente produzida, mas a sociedade ainda não dispõe de um meio socialmente reconhecido para medir o trabalho humano abstrato que ela representa.
A gênese do equivalente universal
Para que a circulação se torne contínua e estável, é necessário que uma mercadoria específica seja socialmente reconhecida como equivalente universal — aquela em que todas as demais expressam o seu valor. Inicialmente, diversas mercadorias podem desempenhar esse papel (sal, gado, peles, metais). Contudo, à medida que o comércio se desenvolve, uma delas se fixa de modo estável — geralmente o ouro ou a prata — e passa a representar o valor de todas as outras.
Marx descreve esse processo de maneira lógica e histórica:
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Forma simples do valor: uma mercadoria expressa seu valor em outra (20 varas de linho = 1 casaco).
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Forma desdobrada: cada mercadoria expressa seu valor em muitas outras.
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Forma geral: todas as mercadorias expressam seu valor em uma mercadoria específica.
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Forma-dinheiro: essa mercadoria específica (ouro, por exemplo) torna-se o equivalente universal.
Essa progressão mostra que o dinheiro não é uma invenção arbitrária ou uma convenção jurídica, mas um resultado necessário das contradições internas à própria mercadoria.
O dinheiro como resolução aparente da contradição
O dinheiro aparece, assim, como a solução social dessa contradição: ele separa o ato de vender e comprar, permitindo que o valor de uso e o valor de troca se realizem em momentos distintos. O dinheiro objetiva o valor e o torna autônomo em relação ao uso concreto.
Por meio do dinheiro, o valor de troca ganha existência independente e se torna algo aparentemente natural — o que Marx chamará de fetichismo da forma-dinheiro.
No entanto, essa solução é apenas aparente: a contradição entre o trabalho privado e sua validação social continua existindo. O dinheiro apenas disfarça a origem social do valor, ao converter o trabalho humano em uma quantia universal de equivalentes monetários.
Marx sintetiza o processo:
“A contradição entre o caráter privado do trabalho e seu caráter social se manifesta na forma de uma mercadoria particular, o dinheiro, que se torna o equivalente universal.” (O Capital, Livro I, cap. 2)
A contradição entre valor de uso e valor de troca e o valor é o núcleo da análise marxiana da mercadoria. Essa tensão interna conduz logicamente à necessidade do dinheiro como forma social capaz de mediar a circulação e expressar o valor de todas as mercadorias.
O dinheiro, portanto, não nasce de um pacto ou de uma criação técnica, mas da própria estrutura contraditória da mercadoria e do modo de produção que a gera. É a forma histórica pela qual a sociedade capitalista dá expressão ao trabalho social abstrato, convertendo relações entre pessoas em relações entre coisas.
Assim, a gênese do dinheiro em Marx revela o caráter social — e não natural — das categorias econômicas: a mercadoria, o valor e o dinheiro são formas sociais historicamente determinadas que expressam o modo como, no capitalismo, o trabalho humano se relaciona consigo mesmo por meio das coisas.
