Em Dialética do Concreto (1963), o filósofo tcheco Karel Kosik desenvolve uma das categorias centrais de sua obra: a pseudoconcreticidade. Esse conceito refere-se ao mundo fenomênico das aparências, onde a realidade social aparece de forma invertida, reificada e alienada, obscurecendo suas mediações essenciais. Kosik busca desvendar como a práxis humana, em condições históricas determinadas, produz um “mundo da aparência” que se impõe como imediato e natural, mas que, na verdade, é mediado por relações sociais fetichizadas.
O primeiro capítulo de "Dialética do Concreto", intitulado "Dialética da Totalidade Concreta", constitui o alicerce teórico da obra de Karel Kosik. Nele, o filósofo tcheco inaugura uma investigação radical sobre as condições de possibilidade do conhecimento da realidade, partindo de uma pergunta fundamental: como distinguir o mundo aparente do mundo real? Kosik desenvolve, como resposta a esse questionamento, o conceito de pseudoconcreticidade – uma categoria chave para compreender como a realidade social se apresenta de maneira invertida, fetichizada e alienada na experiência cotidiana.
A pseudoconcreticidade representa o mundo das aparências, onde os fenômenos superficiais ocultam as relações essenciais que os constituem. É o domínio da imediaticidade não-crítica, no qual os produtos da atividade humana – instituições, mercadorias, relações sociais – aparecem como entidades autônomas e naturais, independentes da práxis que os gerou. Kosik herda e reformula a tradição marxiana da crítica ao fetichismo, mas avança ao articular essa crítica com uma teoria do conhecimento e uma ontologia da práxis.
Neste capítulo, Kosik estabelece um diálogo crítico com correntes filosóficas como o positivismo, o empirismo e o idealismo, mostrando como estas, cada uma à sua maneira, perpetuam a pseudoconcreticidade ao tomarem o mundo fenomênico como a realidade última. Contra essas tendências, ele propõe a dialética como método de desvelamento, capaz de destruir a pseudoconcreticidade e alcançar a totalidade concreta – a realidade em sua estruturação essencial e em seu movimento histórico.
A presente análise busca reconstruir sistematicamente os principais conceitos deste capítulo fundacional, mostrando como Kosik articula a crítica da pseudoconcreticidade com uma teoria da práxis e uma epistemologia dialética que permanecem profundamente atuais para a crítica da sociedade contemporânea.
Kosik define a pseudoconcreticidade como: "O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural."
Karel Kosik identifica e analisa quatro dimensões fundamentais que compõem o mundo da pseudoconcreticidade. Estas não são esferas separadas, mas momentos inter-relacionados de uma mesma realidade alienada. A primeira refere-se à superfície aparente da realidade, onde os processos sociais essenciais aparecem de forma invertida e fragmentada. Kosik enfatiza que estes fenômenos não são falsos, mas manifestações parciais e distorcidas da essência. "O mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais." Ou seja, a externalidade do fenômeno, sua aparência imediata, esconde a essência ao mesmo tempo que se manifesta como fragmento dessa.
A segunda dimensão diz Kosik "O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade)." Esta dimensão refere-se à atividade humana alienada, reduzida à manipulação utilitária de coisas e pessoas. A práxis fetichizada é oposta à práxis autêntica – aquela que transforma conscientemente a realidade. A terceira é o mundo das representações comuns, ou da ideologia, em que as formas de consciência que surgem espontaneamente da práxis alienada. Kosik as chama de "pensamento comum" – não no sentido pejorativo, mas como a consciência que reproduz acriticamente as aparências. Explica que: "O mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento."
Por fim, a reificação (Verdinglichung) onde os processos sociais que aparecem como coisas, as instituições, relações sociais e produtos humanos parecem ter existência independente de seus criadores, por exemplo, o dinheiro, que aparece como coisa em si, não como relação social; ou as burocracias que parecem "máquinas" impessoais.
Kosik apresenta estas dimensões como articuladas dialeticamente: A práxis fetichizada (2) produz objetos fixados (4). Estes objetos aparecem como fenômenos superficiais (1), que, por sua vez, geram representações comuns (3), que, por sua vez, legitimam e reproduzem a práxis fetichizada (2). Formando assim um círculo de alienação que se auto perpetua.
Kosik não está simplesmente descrevendo quatro "erros" do pensamento, mas quatro dimensões estruturais de uma realidade social alienada. A pseudoconcreticidade é ontológica, porque refere-se ao modo de ser da realidade social e do ser social. É epistemológica, já que condiciona nossas formas de conhecer a imediaticidade dos fenômenos e das coisas tais quais elas se apresentam, ou seja, sem revelar a essência que essa oculta. E é de práxis, pois é produzida e reproduzida pela atividade humana, pois segundo Kosik "O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido."
Kosik insiste que a pseudoconcreticidade não é um erro do pensamento, mas tem raízes na práxis histórica concreta: "A práxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e unilateral, é a práxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se ergue." A práxis utilitária cotidiana gera uma forma específica de consciência – o "pensamento comum" – que reproduz a pseudoconcreticidade, segundo Kosik: "A práxis utilitária cotidiana cria 'o pensamento comum' – em que são captados tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto a técnica de tratamento das coisas – como forma de seu movimento e de sua existência."
A Cotidianidade como Solo da Alienação: A Gênese Social da Pseudoconcreticidade em Karel Kosik
A análise de Karel Kosik sobre a pseudoconcreticidade encontra seu fundamento mais profundo na compreensão da cotidianidade como solo fértil onde a alienação social germina e se reproduz. Para o filósofo tcheco, a cotidianidade não representa simplesmente o conjunto de atividades rotineiras que compõem o dia a dia, mas constitui uma estrutura específica de existência social que gera e sustenta o mundo das aparências. É nesse espaço aparentemente trivial da vida quotidiana que se consolidam os mecanismos de reificação que caracterizam a pseudoconcreticidade.
Kosik descreve a cotidianidade como "a noite da desatenção, da mecanicidade e da institutividade, ou então como mundo da familiaridade". Esta metáfora da "noite" revela o caráter obscuro e não-reflexivo que marca a existência cotidiana alienada. Na cotidianidade, as ações humanas transformam-se em gestos automáticos, repetitivos e não-conscientes, onde a relação com o mundo perde seu caráter problemático e questionador. O que era historicamente construído e socialmente determinado aparece como natural e óbvio, criando uma espécie de "segunda natureza" que encobre as verdadeiras relações sociais.
A cotidianidade opera através de um processo de naturalização do social que constitui o núcleo da pseudoconcreticidade. As relações sociais historicamente determinadas - como a divisão de classes, as hierarquias de poder, as estruturas de dominação - apresentam-se como se fossem fenômenos naturais, imutáveis e eternos. Esta naturalização não é um simples erro cognitivo, mas um efeito necessário da própria estrutura da práxis cotidiana alienada. O trabalhador que executa diariamente as mesmas tarefas fragmentadas, sem compreender o processo produtivo total, não está apenas realizando um trabalho: está reproduzindo, através de sua atividade prática, uma determinada forma de relação com a realidade que impede o desvelamento das essências.
Outro mecanismo fundamental é o que poderíamos chamar de "familiarização do estranhamento". Kosik observa que "na cotidianidade a atividade e o modo de viver se transformam em um instintivo, subconsciente e inconsciente, irrefletido mecanismo de ação e de vida". O que é essencialmente estranho e alienado - como a transformação da atividade humana em mercadoria ou a conversão das relações sociais em relações entre coisas - torna-se familiar, íntimo, aceito como "normal". Esta familiaridade com o próprio estranhamento constitui uma das formas mais eficazes de sustentação da ordem social alienada.
A fragmentação da experiência na vida cotidiana completa este quadro de geração da pseudoconcreticidade. Na sociedade capitalista desenvolvida, a cotidianidade aparece como um conjunto desconexo de fenômenos e atividades sem unidade aparente. O indivíduo move-se entre esferas separadas - trabalho, família, consumo, lazer - sem perceber as conexões essenciais que unificam estas diferentes dimensões da vida social. Esta fragmentação impede a compreensão da totalidade concreta e reforça a aparência de que a realidade social é simplesmente um aglomerado de fatos e eventos desconexos.
Kosik enfatiza que a cotidianidade não é apenas o espaço onde a pseudoconcreticidade se manifesta, mas o terreno onde ela é ativamente produzida e reproduzida. Através da "práxis utilitária cotidiana", os homens não apenas se adaptam ao mundo reificado, mas o recriam constantemente através de suas ações. Esta práxis utilitária, orientada para a manipulação imediata de coisas e pessoas, gera correspondentemente uma forma específica de consciência - o "pensamento comum" - que capta a realidade apenas em sua superficialidade fenomênica.
Porém, Kosik não vê a cotidianidade apenas como puro obstáculo à emancipação. Ela contém uma ambiguidade fundamental: se por um lado é o solo da alienação, por outro constitui o ponto de partida necessário para qualquer transformação real. A análise da vida cotidiana oferece, "em certa medida, a via de acesso à compreensão e à descrição da realidade". A superação da pseudoconcreticidade exige portanto não a fuga da cotidianidade, mas sua transformação radical através de uma práxis que rompa com o utilitarismo e a imediatidade.
Esta compreensão da cotidianidade como solo da alienação mantém extraordinária atualidade. Nas sociedades contemporâneas, onde a vida cotidiana é cada vez mais mediada por tecnologias digitais e submetida à lógica do consumo, os mecanismos descritos por Kosik adquirem novas e mais sofisticadas formas. A naturalização das desigualdades, a familiarização com formas sutis de controle, e a fragmentação da experiência atingem níveis inéditos, tornando mais urgente do que nunca a tarefa de desvelar a pseudoconcreticidade que habita o coração do nosso cotidiano.