Em O Capital, Karl Marx parte da análise da mercadoria para desvendar os fundamentos do modo de produção capitalista. A mercadoria, “forma elementar da riqueza burguesa”, é o ponto de partida porque nela se condensam as contradições que estruturam a sociabilidade capitalista. A mais fundamental dessas contradições é a que se estabelece entre valor de uso e valor de troca, cuja dinâmica interna conduz necessariamente à formação da forma-dinheiro — o equivalente universal das mercadorias.
A passagem da mercadoria ao dinheiro não é, em Marx, um episódio técnico ou histórico acidental; é uma necessidade lógica e social do próprio desenvolvimento das trocas de mercadorias. O dinheiro surge como a solução — parcial e aparente — da contradição entre a utilidade concreta das coisas e o valor social abstrato nelas incorporado.
A duplicidade da mercadoria: valor de uso e valor de troca
Toda mercadoria, ensina Marx, apresenta uma dupla natureza: é simultaneamente valor de uso e valor de troca.
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O valor de uso refere-se à utilidade concreta do objeto, à sua capacidade de satisfazer uma necessidade humana.
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O valor de troca, por sua vez, expressa a proporção em que uma mercadoria pode ser trocada por outras, isto é, a quantidade de trabalho humano abstrato socialmente necessária à sua produção.
Essa duplicidade não é apenas uma característica formal: ela encerra uma contradição real. O produtor de mercadorias não trabalha para o próprio consumo, mas para o mercado. Assim, o produto de seu trabalho tem de ser valor de uso para o outro e valor de troca para si mesmo. O que o move não é a utilidade de seu produto, mas o reconhecimento social do trabalho que ele contém — seu valor.
Marx formula com precisão essa tensão ao afirmar que:
“A mercadoria deve realizar-se como valor antes de poder realizar-se como valor de uso.” (O Capital, Livro I, cap. 2)
A contradição e o limite da troca direta
Na circulação simples, ou escambo, a troca depende de uma coincidência dupla: A deve querer o produto de B, e B deve querer o produto de A. Essa exigência torna o sistema extremamente limitado e instável. O valor de troca de cada mercadoria precisa ser medido de forma universal, mas, na troca direta, cada mercadoria só expressa seu valor relativamente a outra — nunca de modo geral.
Essa impossibilidade de expressão universal do valor revela que o próprio ato de troca contém uma contradição não resolvida: a mercadoria é socialmente produzida, mas a sociedade ainda não dispõe de um meio socialmente reconhecido para medir o trabalho humano abstrato que ela representa.
A gênese do equivalente universal
Para que a circulação se torne contínua e estável, é necessário que uma mercadoria específica seja socialmente reconhecida como equivalente universal — aquela em que todas as demais expressam o seu valor. Inicialmente, diversas mercadorias podem desempenhar esse papel (sal, gado, peles, metais). Contudo, à medida que o comércio se desenvolve, uma delas se fixa de modo estável — geralmente o ouro ou a prata — e passa a representar o valor de todas as outras.
Marx descreve esse processo de maneira lógica e histórica:
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Forma simples do valor: uma mercadoria expressa seu valor em outra (20 varas de linho = 1 casaco).
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Forma desdobrada: cada mercadoria expressa seu valor em muitas outras.
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Forma geral: todas as mercadorias expressam seu valor em uma mercadoria específica.
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Forma-dinheiro: essa mercadoria específica (ouro, por exemplo) torna-se o equivalente universal.
Essa progressão mostra que o dinheiro não é uma invenção arbitrária ou uma convenção jurídica, mas um resultado necessário das contradições internas à própria mercadoria.
O dinheiro como resolução aparente da contradição
O dinheiro aparece, assim, como a solução social dessa contradição: ele separa o ato de vender e comprar, permitindo que o valor de uso e o valor de troca se realizem em momentos distintos. O dinheiro objetiva o valor e o torna autônomo em relação ao uso concreto.
Por meio do dinheiro, o valor de troca ganha existência independente e se torna algo aparentemente natural — o que Marx chamará de fetichismo da forma-dinheiro.
No entanto, essa solução é apenas aparente: a contradição entre o trabalho privado e sua validação social continua existindo. O dinheiro apenas disfarça a origem social do valor, ao converter o trabalho humano em uma quantia universal de equivalentes monetários.
Marx sintetiza o processo:
“A contradição entre o caráter privado do trabalho e seu caráter social se manifesta na forma de uma mercadoria particular, o dinheiro, que se torna o equivalente universal.” (O Capital, Livro I, cap. 2)
A contradição entre valor de uso e valor de troca e o valor é o núcleo da análise marxiana da mercadoria. Essa tensão interna conduz logicamente à necessidade do dinheiro como forma social capaz de mediar a circulação e expressar o valor de todas as mercadorias.
O dinheiro, portanto, não nasce de um pacto ou de uma criação técnica, mas da própria estrutura contraditória da mercadoria e do modo de produção que a gera. É a forma histórica pela qual a sociedade capitalista dá expressão ao trabalho social abstrato, convertendo relações entre pessoas em relações entre coisas.
Assim, a gênese do dinheiro em Marx revela o caráter social — e não natural — das categorias econômicas: a mercadoria, o valor e o dinheiro são formas sociais historicamente determinadas que expressam o modo como, no capitalismo, o trabalho humano se relaciona consigo mesmo por meio das coisas.
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