segunda-feira, outubro 27, 2025

As Duas Formas de “Ganhar Dinheiro”: o Comércio e o Capital em Karl Marx

 Em O Capital, Karl Marx demonstra que o capitalismo não se reduz à simples circulação de mercadorias. Ele é um modo de produção social fundado na valorização do valor — um processo em que o dinheiro, ao se converter em capital, passa a ter o fim de aumentar a si mesmo.

Para explicar essa transformação, Marx compara duas formas de movimento do dinheiro: a venda mais cara da mercadoria (lucro comercial) e o movimento D–M–D′ (dinheiro–mercadoria–mais dinheiro), a fórmula geral do capital.
A distinção entre esses dois movimentos é decisiva: enquanto a primeira se limita à circulação e não cria novo valor, a segunda expressa uma relação social de exploração entre capital e trabalho, típica do modo de produção capitalista.

A venda mais cara: lucro mercantil e ilusão da valorização

Na circulação simples de mercadorias, o movimento econômico é representado por M–D–M: o produtor vende uma mercadoria (M) para obter dinheiro (D) e comprar outra mercadoria (M). O objetivo é o valor de uso, isto é, a satisfação de necessidades.

Contudo, na esfera do comércio, pode ocorrer que alguém compre por 100 e venda por 120, obtendo um ganho monetário. À primeira vista, parece que o dinheiro se “valorizou” na circulação. Marx, porém, mostra que esse processo é ilusório: não há criação de valor novo, apenas redistribuição de valor existente.

“Se o valor da mercadoria se troca apenas por seu equivalente, não surge mais-valor. E se se troca por algo acima do valor, isso é apenas uma fraude, que não pode generalizar-se.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

No comércio simples, o lucro de um é a perda de outro. A soma total de valores na sociedade permanece idêntica. Não há acréscimo global de riqueza; apenas ocorre uma transferência de valor.
Assim, a venda mais cara é um jogo de soma zero. O “ganho” do comerciante depende da diferença de preços, não da criação de valor novo.

David Harvey explica que essa distinção é fundamental para a crítica de Marx à economia vulgar, que confundia a circulação com a valorização real:

“A troca desigual não cria valor, apenas redistribui o que já existe. A origem do lucro capitalista deve ser procurada fora da esfera da circulação, no domínio da produção.” (Harvey, Para Entender O Capital, p. 71)

O movimento D–M–D′: o dinheiro como capital

Ao contrário da circulação simples, o movimento D–M–D′ expressa a forma capitalista do dinheiro.
Aqui, o dinheiro não é meio de troca, mas meio de valorização. O possuidor de dinheiro compra mercadorias (M) — meios de produção e força de trabalho — com o objetivo de vendê-las por um montante superior (D′ = D + ΔD).

“O movimento D–M–D′ é contraditório em si mesmo, pois pressupõe que a troca gera valor, quando o princípio da troca é a equivalência.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

A diferença ΔD = D′ – D é o mais-valor (ou mais-valia). Ela não surge da troca, mas do processo de produção. O capitalista compra todas as mercadorias por seus valores, mas uma delas — a força de trabalho — tem a capacidade singular de criar valor novo.

O trabalhador, ao ser remunerado por um salário equivalente ao valor de sua força de trabalho (tempo de trabalho necessário à sua reprodução), produz, durante a jornada, valor superior a esse custo.
Esse excedente de trabalho não pago é o mais-valor, fundamento do lucro capitalista.

“O segredo da valorização consiste no fato de que o capitalista encontra no mercado uma mercadoria cujo valor de uso possui a propriedade de criar valor: a força de trabalho.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

A diferença estrutural entre as duas formas

A distinção entre a venda mais cara e o movimento D–M–D′ é qualitativa e estrutural.
No primeiro caso, o ganho é mercantil, ocasional e depende de assimetrias de mercado. No segundo, é capitalista, sistemático e proveniente da exploração da força de trabalho.

Critério Venda mais cara (lucro comercial) D–M–D′ (valorização capitalista)
Origem do ganho Troca desigual ou especulação Produção de mais-valor
Criação de novo valor Não — redistribui valor existente Sim — valor novo criado pelo trabalho
Base social Circulação mercantil simples Relação capital–trabalho
Tipo de lucro Lucro mercantil Lucro capitalista (mais-valia)
Caráter histórico Ocasional, pré-capitalista Estrutural, típico do capitalismo

Harvey destaca que o capital não pode surgir na circulação, mas também não pode surgir fora dela: ele nasce na e pela produção, mas só se realiza na circulação.

“O capital é um processo que se inicia com a compra e venda de mercadorias, mas seu segredo está na produção, onde o trabalho vivo é consumido como fonte de mais-valor.” (Para Entender O Capital, p. 73)

O capital como relação social de produção

A fórmula D–M–D′ não representa uma simples operação comercial, mas uma relação social de produção.
O dinheiro converte-se em capital ao comprar a mercadoria força de trabalho, o que só é possível em uma sociedade onde os trabalhadores são juridicamente livres, mas despossuídos dos meios de produção — “livres no duplo sentido”, como diz Marx.

“Para que o dinheiro se transforme em capital, o possuidor de dinheiro deve encontrar no mercado o trabalhador livre, livre no duplo sentido: como pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e, por outro lado, sem estar ligado a nenhum meio de produção.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

O lucro capitalista nasce, assim, da diferença entre o valor pago pela força de trabalho e o valor que ela cria.
Não é o dinheiro que “gera” dinheiro, mas o trabalho humano vivo colocado sob o comando do capital.

Harvey sintetiza:

“O capital é um processo social em que o dinheiro se valoriza explorando o trabalho vivo. O capitalista não vende mais caro; ele faz o trabalho trabalhar mais.” (Para Entender O Capital, p. 76)

 A análise marxiana das “duas formas de ganhar dinheiro” revela a distinção entre o lucro mercantil, que se limita à esfera da troca, e o lucro capitalista, que decorre da produção de mais-valor.

Enquanto a primeira forma não cria riqueza nova, a segunda funda a própria dinâmica do capitalismo: o dinheiro transforma-se em capital e entra em um movimento contínuo de valorização, cuja finalidade é apenas a sua expansão infinita.

“O capital é valor em processo, valor que se valoriza.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

Ao desvendar essa diferença, Marx mostra que o capitalismo não é um sistema de trocas “justas”, mas uma forma histórica específica de exploração.
A fórmula D–M–D′ expressa, portanto, a essência social do capital: um valor que cresce ao incorporar trabalho humano, convertendo a vida em meio de acumulação.

Como sintetiza David Harvey:

“O capital não vive da circulação, mas da produção; e o que ele produz, acima de tudo, é o próprio movimento sem fim de sua valorização.” (Para Entender O Capital, p. 77)

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