terça-feira, outubro 28, 2025

O Dinheiro e a Dialética do Trabalho em Marx: Relações entre Trabalho Vivo, Trabalho Morto, Valor e Mais-Valor

 


A crítica de Karl Marx à economia política atinge seu núcleo conceitual quando ele revela que o capitalismo é, essencialmente, um sistema de valorização do valor.
Nele, o dinheiro não é apenas um meio de troca, mas o ponto de partida e de chegada de um processo social no qual o trabalho humano — vivo — é consumido para gerar mais-valor e manter o movimento incessante de acumulação.

Como sintetiza David Harvey:

“O capital é um processo que começa com dinheiro, se materializa no trabalho e termina com mais dinheiro. É a metamorfose do trabalho humano em valor.” (Para Entender O Capital, p. 85)

Este artigo analisa como os conceitos de trabalho vivo, trabalho morto, valor, mais-valor e dinheiro se articulam no pensamento de Marx, evidenciando a lógica interna do capital e o papel do trabalho como fundamento de toda a valorização.

Trabalho vivo e trabalho morto: a dialética da produção

No processo produtivo, Marx distingue dois tipos de trabalho:

  • Trabalho vivo: a atividade presente do trabalhador, criadora de valor novo.

  • Trabalho morto: o trabalho passado, incorporado em meios de produção (máquinas, matérias-primas, edifícios, etc.).

O trabalho vivo põe em movimento o trabalho morto e lhe dá nova vida, ao mesmo tempo que é por ele controlado e limitado.
Essa relação expressa uma contradição central do capitalismo: o capital depende do trabalho vivo para se valorizar, mas busca constantemente reduzi-lo e substituí-lo por máquinas.

“O trabalho passado, incorporado nos meios de produção, só reaparece no produto. O trabalho vivo, ao contrário, cria valor novo e reanima o trabalho morto.” (O Capital, Livro I, cap. 7)

Harvey observa que, para Marx, essa relação não é apenas técnica, mas social:

“O trabalho morto domina o trabalho vivo porque o capital, como valor acumulado, comanda o processo produtivo. O trabalhador se torna apêndice da máquina que ele mesmo criou.” (Para Entender O Capital, p. 90)

O valor e a substância do trabalho

O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção.
Esse trabalho é abstrato — isto é, não importa o tipo concreto de atividade, mas a quantidade média de esforço humano socialmente reconhecida.
Assim, o valor não é uma qualidade material, mas uma relação social mediada por coisas.

“A substância do valor é o trabalho humano abstrato, e sua medida é o tempo de trabalho socialmente necessário.” (O Capital, Livro I, cap. 1)

O trabalho morto transfere ao produto o valor que já contém; o trabalho vivo, por sua vez, acrescenta valor novo.
A combinação de ambos — a unidade contraditória entre o passado e o presente — constitui o processo de valorização.

 O mais-valor: o trabalho vivo como fonte da valorização

A peculiaridade do capitalismo está em que o capitalista compra, no mercado, uma mercadoria especial: a força de trabalho.
Seu valor é determinado pelo custo de sua reprodução (o salário), mas o uso dessa mercadoria cria valor superior ao que ela custa.

Durante a jornada de trabalho:

  • Uma parte do tempo o trabalhador reproduz o valor do salário (trabalho necessário).

  • Na outra parte, continua produzindo sem remuneração (sobretrabalho).

Esse excedente é o mais-valor, base do lucro capitalista.

“O valor de uso da força de trabalho consiste em criar valor, e até mais valor do que ela mesma possui.” (O Capital, Livro I, cap. 6)

David Harvey resume:

“O capital compra o direito de consumir o trabalho vivo e, nesse consumo, extrai o mais-valor. É o uso da força de trabalho que valoriza o capital.” (Para Entender O Capital, p. 81)

O dinheiro como forma social do valor

O dinheiro é a forma fenomênica do valor — sua expressão universal.
Ele surge como equivalente geral das mercadorias e, no capitalismo, converte-se em capital quando entra no ciclo D–M–D′ (dinheiro–mercadoria–mais dinheiro).

Esse movimento expressa a metamorfose do trabalho:

  1. D — o dinheiro é valor potencial, acumulado.

  2. M — ele compra força de trabalho e meios de produção.

  3. P (produção) — o trabalho vivo consome o trabalho morto e cria mais-valor.

  4. M′–D′ — a mercadoria é vendida e o valor se realiza novamente como dinheiro, agora ampliado.

“O capital é valor que se valoriza. O dinheiro, ao se transformar em capital, torna-se sujeito de um processo cujo fim é seu próprio aumento.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

O dinheiro é, portanto, a forma final do trabalho humano socialmente validado.
Ele representa o resultado do processo de exploração, convertendo o esforço humano em abstração monetária.

Harvey explica:

“O dinheiro parece gerar mais dinheiro, mas na verdade apenas reflete o processo social de extração de mais-valor do trabalho vivo. O dinheiro é o fetiche supremo do capital.” (Para Entender O Capital, p. 87)


A inversão fetichista: o domínio do trabalho morto sobre o vivo

O movimento do capital faz com que o trabalho morto (valor acumulado) apareça como a verdadeira fonte de riqueza, enquanto o trabalho vivo é reduzido a mero instrumento.
Essa inversão é o que Marx denomina fetichismo da produção capitalista: as coisas (máquinas, dinheiro, capital) parecem possuir poder próprio, enquanto o sujeito humano é objetificado.

“O capital é trabalho morto que, como um vampiro, vive apenas sugando o trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho suga.” (O Capital, Livro I, cap. 10)

Harvey reforça a atualidade dessa metáfora:

“O capital é o trabalho morto que domina o vivo. As máquinas, os algoritmos e o dinheiro funcionam como formas sociais que mascaram as relações humanas de exploração.” (Para Entender O Capital, p. 94)

A conexão entre trabalho vivo, trabalho morto, valor, mais-valor e dinheiro revela a essência dinâmica e contraditória do capitalismo.
O trabalho vivo é a única fonte criadora de valor, mas sua própria produtividade tende a reduzir sua participação direta na produção, substituindo-o por máquinas — trabalho morto.
Assim, quanto mais o capital busca se libertar do trabalho vivo, mais destrói a base de sua própria valorização.

O dinheiro, ao fim, é apenas a expressão abstrata desse processo: a forma em que o trabalho humano aparece como coisa, como poder autônomo.
A crítica de Marx, portanto, mostra que o capital não é um objeto nem uma soma de dinheiro, mas uma relação social mediada pelo dinheiro, sustentada pela exploração do trabalho vivo.

“O capital é valor em processo, valor que se valoriza, mas cuja vida depende do sangue do trabalho humano.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

“O dinheiro é a aparência final do trabalho explorado — o espelho no qual o trabalho vivo não se reconhece.” (Harvey, Para Entender O Capital, p. 95)


segunda-feira, outubro 27, 2025

O Trabalho como Mercadoria Especial: Por que Só o Trabalho Cria Valor em Karl Marx

 A análise de Karl Marx sobre o capitalismo parte de uma questão simples e revolucionária: de onde vem o lucro, se as mercadorias são trocadas por equivalentes?

A resposta conduz à descoberta de uma mercadoria singular — a força de trabalho —, cuja particularidade é ser a única capaz de criar valor novo.
Enquanto todas as demais mercadorias apenas transferem o valor nelas contido, a força de trabalho produz valor adicional.

Como observa David Harvey, essa é “a grande virada teórica de O Capital”: “Marx mostra que a força de trabalho é uma mercadoria peculiar. O uso dessa mercadoria cria mais valor do que o necessário para reproduzi-la. É aqui que nasce o mais-valor e, portanto, o capital.” (Para Entender O Capital, p. 79)

A lei do valor e o trabalho humano abstrato

Para Marx, toda mercadoria tem duas dimensões: valor de uso e valor de troca.
O valor de troca, ou simplesmente valor, é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção.
Esse tempo é a medida do trabalho humano abstrato — o dispêndio de energia humana indiferenciada, que constitui a substância do valor.

“O valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário à sua produção.” (O Capital, Livro I, cap. 1)

Contudo, para que o valor exista, o trabalho deve aparecer como trabalho social — isto é, dentro de uma sociedade onde os produtos do trabalho assumem a forma de mercadorias.
Logo, o valor não é uma categoria técnica, mas social: expressa a forma como o trabalho humano é organizado e reconhecido no capitalismo.

As mercadorias comuns: portadoras de valor, não criadoras de valor

Todas as mercadorias — máquinas, matérias-primas, ferramentas — são produtos de trabalho anterior.
Quando entram no processo produtivo, elas não criam valor novo, apenas transferem ao produto final o valor que já possuem.

Por exemplo:

  • O tear transfere ao tecido parte do seu próprio valor (à medida que se desgasta).

  • O algodão transfere ao tecido o valor do trabalho contido nele.

Em ambos os casos, o valor é reproduzido, não ampliado.
Nenhuma dessas mercadorias tem a capacidade de gerar mais valor do que contêm.

“O trabalho passado, incorporado nos meios de produção, só reaparece no produto. Ele não cria valor novo.” (O Capital, Livro I, cap. 5)

A força de trabalho: uma mercadoria especial

Entre todas as mercadorias, existe uma singular: a força de trabalho, isto é, a capacidade humana de trabalhar.
Ela também tem um valor, determinado pelo tempo de trabalho necessário para sua reprodução — alimentação, moradia, vestuário, transporte, educação, saúde, etc.
Esse é o conteúdo material do salário: o capitalista paga ao trabalhador o equivalente ao custo de manter e reproduzir sua força de trabalho.

Mas — e aqui está o ponto decisivo — o valor de uso dessa mercadoria é o trabalho vivo, e o seu uso cria valor novo.

“O valor de uso da força de trabalho consiste em produzir valor, e até mais valor do que ela mesma possui. Este é o segredo da produção capitalista de mais-valor.” (O Capital, Livro I, cap. 6)

O uso da força de trabalho e a criação do mais-valor

Durante o processo de produção, o trabalhador:

  1. Reproduz o valor de sua força de trabalho (trabalho necessário).

  2. Cria valor excedente (trabalho excedente ou sobretrabalho).

Por exemplo:

  • Em 4 horas, o trabalhador cria valor equivalente ao seu salário diário.

  • Nas 4 horas seguintes, continua produzindo, mas sem receber por isso.

  • O valor criado nesse período excedente é o mais-valor, apropriado pelo capitalista como lucro.

Assim, o capitalista paga o valor da força de trabalho, mas se apropria do valor de uso dessa mercadoria, que é a capacidade de gerar valor.
Esse é o núcleo da exploração capitalista.

“O valor da força de trabalho é pago, mas o seu valor de uso consiste precisamente em criar valor maior do que o seu próprio valor.” (O Capital, Livro I, cap. 6)

Harvey destaca que essa é uma relação social, não um roubo visível:

“O capitalista paga um preço justo pela força de trabalho. A exploração ocorre não na troca, mas no uso dessa mercadoria.” (Para Entender O Capital, p. 80)

O trabalho como fonte exclusiva de valor

A distinção entre trabalho vivo e trabalho morto (incorporado nas mercadorias) é central:

  • O trabalho morto (máquinas, matérias-primas) apenas transfere valor.

  • O trabalho vivo cria valor novo — e, portanto, é a única mercadoria que aumenta o valor total da sociedade.

“O trabalho é a substância e a medida imanente do valor. Nenhuma máquina, por perfeita que seja, cria valor; apenas o transfere.” (O Capital, Livro I, cap. 7)

David Harvey resume:

“O capital pode comprar qualquer mercadoria, mas só a força de trabalho o valoriza. O dinheiro se transforma em capital apenas porque compra a capacidade humana de criar valor.” (Para Entender O Capital, p. 82)

Implicações sociais e políticas

A descoberta de Marx tem consequências profundas:

  1. O lucro capitalista não provém de “vender mais caro”, mas da apropriação sistemática de trabalho não pago.

  2. O trabalho assalariado é, portanto, uma forma de exploração disfarçada por relações contratuais “livres”.

  3. O capital depende estruturalmente da força de trabalho — ela é a fonte da valorização.

  4. Toda inovação tecnológica que reduz o trabalho vivo minando a base da valorização tende a provocar crises (como Marx antecipa nos Grundrisse).

Apenas o trabalho é a mercadoria que cria valor porque seu valor de uso é produtivo de valor novo.
Todas as demais mercadorias participam do processo produtivo, mas apenas o trabalho vivo adiciona valor ao capital.
É essa capacidade específica que transforma o trabalhador em objeto de exploração e o dinheiro em capital.

Marx descobre, assim, o “segredo da produção capitalista”:

“O capitalista compra força de trabalho para consumir seu valor de uso: o trabalho. E, consumindo-a, cria mais-valor, valor que não lhe custa nada.” (O Capital, Livro I, cap. 6)

Harvey conclui:

“O capital é uma relação social fundada na mercantilização da força de trabalho. É porque o trabalho, e apenas ele, cria valor, que o capital busca incessantemente explorá-lo, estendendo a jornada, intensificando o ritmo, ou barateando sua reprodução.” (Para Entender O Capital, p. 83)

O trabalho, portanto, não é apenas uma mercadoria entre outras: é a mercadoria fundante, sem a qual o capitalismo não pode existir — o coração vivo do valor.


As Duas Formas de “Ganhar Dinheiro”: o Comércio e o Capital em Karl Marx

 Em O Capital, Karl Marx demonstra que o capitalismo não se reduz à simples circulação de mercadorias. Ele é um modo de produção social fundado na valorização do valor — um processo em que o dinheiro, ao se converter em capital, passa a ter o fim de aumentar a si mesmo.

Para explicar essa transformação, Marx compara duas formas de movimento do dinheiro: a venda mais cara da mercadoria (lucro comercial) e o movimento D–M–D′ (dinheiro–mercadoria–mais dinheiro), a fórmula geral do capital.
A distinção entre esses dois movimentos é decisiva: enquanto a primeira se limita à circulação e não cria novo valor, a segunda expressa uma relação social de exploração entre capital e trabalho, típica do modo de produção capitalista.

A venda mais cara: lucro mercantil e ilusão da valorização

Na circulação simples de mercadorias, o movimento econômico é representado por M–D–M: o produtor vende uma mercadoria (M) para obter dinheiro (D) e comprar outra mercadoria (M). O objetivo é o valor de uso, isto é, a satisfação de necessidades.

Contudo, na esfera do comércio, pode ocorrer que alguém compre por 100 e venda por 120, obtendo um ganho monetário. À primeira vista, parece que o dinheiro se “valorizou” na circulação. Marx, porém, mostra que esse processo é ilusório: não há criação de valor novo, apenas redistribuição de valor existente.

“Se o valor da mercadoria se troca apenas por seu equivalente, não surge mais-valor. E se se troca por algo acima do valor, isso é apenas uma fraude, que não pode generalizar-se.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

No comércio simples, o lucro de um é a perda de outro. A soma total de valores na sociedade permanece idêntica. Não há acréscimo global de riqueza; apenas ocorre uma transferência de valor.
Assim, a venda mais cara é um jogo de soma zero. O “ganho” do comerciante depende da diferença de preços, não da criação de valor novo.

David Harvey explica que essa distinção é fundamental para a crítica de Marx à economia vulgar, que confundia a circulação com a valorização real:

“A troca desigual não cria valor, apenas redistribui o que já existe. A origem do lucro capitalista deve ser procurada fora da esfera da circulação, no domínio da produção.” (Harvey, Para Entender O Capital, p. 71)

O movimento D–M–D′: o dinheiro como capital

Ao contrário da circulação simples, o movimento D–M–D′ expressa a forma capitalista do dinheiro.
Aqui, o dinheiro não é meio de troca, mas meio de valorização. O possuidor de dinheiro compra mercadorias (M) — meios de produção e força de trabalho — com o objetivo de vendê-las por um montante superior (D′ = D + ΔD).

“O movimento D–M–D′ é contraditório em si mesmo, pois pressupõe que a troca gera valor, quando o princípio da troca é a equivalência.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

A diferença ΔD = D′ – D é o mais-valor (ou mais-valia). Ela não surge da troca, mas do processo de produção. O capitalista compra todas as mercadorias por seus valores, mas uma delas — a força de trabalho — tem a capacidade singular de criar valor novo.

O trabalhador, ao ser remunerado por um salário equivalente ao valor de sua força de trabalho (tempo de trabalho necessário à sua reprodução), produz, durante a jornada, valor superior a esse custo.
Esse excedente de trabalho não pago é o mais-valor, fundamento do lucro capitalista.

“O segredo da valorização consiste no fato de que o capitalista encontra no mercado uma mercadoria cujo valor de uso possui a propriedade de criar valor: a força de trabalho.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

A diferença estrutural entre as duas formas

A distinção entre a venda mais cara e o movimento D–M–D′ é qualitativa e estrutural.
No primeiro caso, o ganho é mercantil, ocasional e depende de assimetrias de mercado. No segundo, é capitalista, sistemático e proveniente da exploração da força de trabalho.

Critério Venda mais cara (lucro comercial) D–M–D′ (valorização capitalista)
Origem do ganho Troca desigual ou especulação Produção de mais-valor
Criação de novo valor Não — redistribui valor existente Sim — valor novo criado pelo trabalho
Base social Circulação mercantil simples Relação capital–trabalho
Tipo de lucro Lucro mercantil Lucro capitalista (mais-valia)
Caráter histórico Ocasional, pré-capitalista Estrutural, típico do capitalismo

Harvey destaca que o capital não pode surgir na circulação, mas também não pode surgir fora dela: ele nasce na e pela produção, mas só se realiza na circulação.

“O capital é um processo que se inicia com a compra e venda de mercadorias, mas seu segredo está na produção, onde o trabalho vivo é consumido como fonte de mais-valor.” (Para Entender O Capital, p. 73)

O capital como relação social de produção

A fórmula D–M–D′ não representa uma simples operação comercial, mas uma relação social de produção.
O dinheiro converte-se em capital ao comprar a mercadoria força de trabalho, o que só é possível em uma sociedade onde os trabalhadores são juridicamente livres, mas despossuídos dos meios de produção — “livres no duplo sentido”, como diz Marx.

“Para que o dinheiro se transforme em capital, o possuidor de dinheiro deve encontrar no mercado o trabalhador livre, livre no duplo sentido: como pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e, por outro lado, sem estar ligado a nenhum meio de produção.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

O lucro capitalista nasce, assim, da diferença entre o valor pago pela força de trabalho e o valor que ela cria.
Não é o dinheiro que “gera” dinheiro, mas o trabalho humano vivo colocado sob o comando do capital.

Harvey sintetiza:

“O capital é um processo social em que o dinheiro se valoriza explorando o trabalho vivo. O capitalista não vende mais caro; ele faz o trabalho trabalhar mais.” (Para Entender O Capital, p. 76)

 A análise marxiana das “duas formas de ganhar dinheiro” revela a distinção entre o lucro mercantil, que se limita à esfera da troca, e o lucro capitalista, que decorre da produção de mais-valor.

Enquanto a primeira forma não cria riqueza nova, a segunda funda a própria dinâmica do capitalismo: o dinheiro transforma-se em capital e entra em um movimento contínuo de valorização, cuja finalidade é apenas a sua expansão infinita.

“O capital é valor em processo, valor que se valoriza.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

Ao desvendar essa diferença, Marx mostra que o capitalismo não é um sistema de trocas “justas”, mas uma forma histórica específica de exploração.
A fórmula D–M–D′ expressa, portanto, a essência social do capital: um valor que cresce ao incorporar trabalho humano, convertendo a vida em meio de acumulação.

Como sintetiza David Harvey:

“O capital não vive da circulação, mas da produção; e o que ele produz, acima de tudo, é o próprio movimento sem fim de sua valorização.” (Para Entender O Capital, p. 77)

A transformação de Dinheiro em Capital e sua Valorização

 Esse texto aborda principalmente o capítulo quatro d’O Capital, que trata sobre a transformação do dinheiro em capital. Trata-se de um importante momento da obra e do pensamento de Marx. É também um momento complexo e há muita confusão, principalmente, entre liberais, sobre a diferenciação do Capital e do Dinheiro, e em tempos de economia capitalista financeira e especulativa, a relação entre Capital e Dinheiro deve ser revisitada. 

Nos capítulos anteriores (1 a 3), ele mostrou como as mercadorias e o dinheiro surgem e circulam; agora, ele pergunta: Como o dinheiro se transforma em capital?

O ponto de partida: o enigma da valorização

Marx parte da observação empírica de que, no capitalismo, o dinheiro não circula apenas para trocar mercadorias. Ele circula para aumentar-se a si mesmo. “O possuidor de dinheiro aparece como comprador de mercadorias com o propósito de, através de sua venda, extrair mais dinheiro. O fim último não é o valor de uso, mas o aumento do valor.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

Ou seja, Na circulação simples, o movimento é M – D – M: vende-se uma mercadoria para comprar outra (troca de valores de uso). Na circulação capitalista, o movimento é D – M – D': investe-se dinheiro para recuperar mais dinheiro (valorização). Marx distingue duas formas de circulação de mercadorias e dinheiro, a simples (mercadoria - dinheiro - mercadoria) e a circulação capitalista (dinheiro - mercadoria - dinheiro a mais). Na economia simples de mercadorias (como entre pequenos produtores), a circulação ocorre com o produtor vende sua mercadoria (M) por dinheiro (D). Com esse dinheiro, compra outra mercadoria (M) de que precisa. O objetivo é o valor de uso — trocar o que não serve por algo útil. Quando essa troca termina, o processo se encerra. O dinheiro é apenas um meio de circulação. Na troca simples, a finalidade é o consumo, o valor de uso; o dinheiro é apenas o meio que torna possível a permuta.” (Marx, O Capital, Livro I, cap. 4)

No capitalismo, o processo se inverte o possuidor de dinheiro (D) compra mercadorias (M), para depois vendê-las por mais dinheiro (D’ = D + ΔD). O objetivo aqui não é o uso, mas o aumento do valor — o dinheiro volta para o ponto de partida, acrescido de um excedente (ΔD), chamado mais-valor (ou mais-valia). Como diz Marx: “A circulação D–M–D’ tem por fim o aumento do valor. O movimento do capital é um fim em si mesmo, pois o valor é aqui o sujeito de um processo de valorização.” (Marx, O Capital, Livro I, cap. 4). 

Por que o dinheiro precisa “aumentar-se a si mesmo”? Porque no capitalismo, o dinheiro se converte em capital — e o capital só existe enquanto valor que se valoriza.  O dinheiro deixa de ser meio e se torna fim. No capitalismo, a riqueza aparece na forma de valor monetário. O capitalista não produz para usar nem para trocar valores equivalentes — ele produz para acumular valor. O dinheiro, portanto, se movimenta para retornar ampliado, num ciclo sem fim. Não há finalidade fora do próprio movimento de valorização. Marx afirma que: “O movimento D–M–D’ é infinito. O capital não tem limite; seu único impulso é valorizar-se, e o capitalista é apenas o seu agente.” (O Capital, Livro I, cap. 4). David Harvey explica isso de forma sintética: “O dinheiro, ao se tornar capital, deixa de ser meio de troca e passa a ser meio de valorização. Ele circula não para comprar, mas para tornar-se mais dinheiro. Esse é o motor do capitalismo: o valor em movimento.” (Harvey, Para Entender O Capital)

O enigma é: se toda troca é entre equivalentes, como o dinheiro cresce? De onde vem o excedente ΔD? Marx responde: o dinheiro só pode aumentar comprando uma mercadoria especial, cujo uso cria mais valor — a força de trabalho humana. Ao comprar essa mercadoria e colocá-la para trabalhar mais tempo do que o necessário para reproduzir o próprio salário, o capitalista extrai mais-valor. Assim: O capitalista paga o valor da força de trabalho (salário); Mas se apropria do valor novo criado pelo trabalho além do necessário; É esse excedente que transforma o dinheiro em capital e explica por que ele circula para aumentar a si mesmo. Aponta Marx que O capital é valor que se valoriza. O dinheiro se transforma em capital quando compra a força de trabalho e a faz produzir mais-valor.” (O Capital, Livro I, cap. 4).

Com a fórmula D–M–D’, Marx mostra que o capital não é um objeto, mas um movimento autônomo do valor. O dinheiro parece agir por conta própria, como se tivesse vontade e se multiplicasse “naturalmente”. Por isso Marx fala do capital como sujeito automático (automaton) — o valor se comporta como uma força viva.“O valor se apresenta como sujeito de um processo em que ele se valoriza, engendra mais-valor e conserva-se em seu crescimento. O capital é valor em processo, valor que se valoriza.” (O Capital, Livro I, cap. 4). Harvey comenta: “O capital é um processo social tornado autônomo. O dinheiro parece multiplicar-se sozinho, mas o que realmente se multiplica é a exploração do trabalho vivo.” (Para Entender O Capital).

O dinheiro circula para aumentar a si mesmo porque, no capitalismo, ele deixa de ser apenas meio de troca e se torna capital — uma forma social que existe apenas enquanto valor em movimento.
Esse movimento só é possível porque o capital compra e consome força de trabalho, única mercadoria capaz de gerar valor novo. O capitalista, portanto, não produz coisas, mas valor — e o faz explorando a capacidade criadora do trabalho humano. O dinheiro, nesse processo, parece “multiplicar-se” sozinho, mas na verdade apenas revela o poder social do trabalho apropriado privadamente.

Harvey resume de modo magistral: “O capital é dinheiro em movimento, mas o seu coração é o trabalho vivo. O dinheiro circula para aumentar a si mesmo porque, atrás dele, pulsa a exploração contínua do trabalho humano.” (Para Entender O Capital, p. 77)


quarta-feira, outubro 22, 2025

PSEUDOCONCRETICIDADE: UM APROFUNDAMENTO SOBRE O FETICHE DA MERCADORIA

 Em Dialética do Concreto (1963), o filósofo tcheco Karel Kosik desenvolve uma das categorias centrais de sua obra: a pseudoconcreticidade. Esse conceito refere-se ao mundo fenomênico das aparências, onde a realidade social aparece de forma invertida, reificada e alienada, obscurecendo suas mediações essenciais. Kosik busca desvendar como a práxis humana, em condições históricas determinadas, produz um “mundo da aparência” que se impõe como imediato e natural, mas que, na verdade, é mediado por relações sociais fetichizadas.

O primeiro capítulo de "Dialética do Concreto", intitulado "Dialética da Totalidade Concreta", constitui o alicerce teórico da obra de Karel Kosik. Nele, o filósofo tcheco inaugura uma investigação radical sobre as condições de possibilidade do conhecimento da realidade, partindo de uma pergunta fundamental: como distinguir o mundo aparente do mundo real? Kosik desenvolve, como resposta a esse questionamento, o conceito de pseudoconcreticidade – uma categoria chave para compreender como a realidade social se apresenta de maneira invertida, fetichizada e alienada na experiência cotidiana.

A pseudoconcreticidade representa o mundo das aparências, onde os fenômenos superficiais ocultam as relações essenciais que os constituem. É o domínio da imediaticidade não-crítica, no qual os produtos da atividade humana – instituições, mercadorias, relações sociais – aparecem como entidades autônomas e naturais, independentes da práxis que os gerou. Kosik herda e reformula a tradição marxiana da crítica ao fetichismo, mas avança ao articular essa crítica com uma teoria do conhecimento e uma ontologia da práxis.

Neste capítulo, Kosik estabelece um diálogo crítico com correntes filosóficas como o positivismo, o empirismo e o idealismo, mostrando como estas, cada uma à sua maneira, perpetuam a pseudoconcreticidade ao tomarem o mundo fenomênico como a realidade última. Contra essas tendências, ele propõe a dialética como método de desvelamento, capaz de destruir a pseudoconcreticidade e alcançar a totalidade concreta – a realidade em sua estruturação essencial e em seu movimento histórico.

A presente análise busca reconstruir sistematicamente os principais conceitos deste capítulo fundacional, mostrando como Kosik articula a crítica da pseudoconcreticidade com uma teoria da práxis e uma epistemologia dialética que permanecem profundamente atuais para a crítica da sociedade contemporânea.

Kosik define a pseudoconcreticidade como: "O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural."

Karel Kosik  identifica e analisa quatro dimensões fundamentais que compõem o mundo da pseudoconcreticidade. Estas não são esferas separadas, mas momentos inter-relacionados de uma mesma realidade alienada. A primeira refere-se à superfície aparente da realidade, onde os processos sociais essenciais aparecem de forma invertida e fragmentada. Kosik enfatiza que estes fenômenos não são falsos, mas manifestações parciais e distorcidas da essência. "O mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais." Ou seja, a externalidade do fenômeno, sua aparência imediata, esconde a essência ao mesmo tempo que se manifesta como fragmento dessa.

A segunda dimensão diz Kosik "O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens (a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade)." Esta dimensão refere-se à atividade humana alienada, reduzida à manipulação utilitária de coisas e pessoas. A práxis fetichizada é oposta à práxis autêntica – aquela que transforma conscientemente a realidade. A terceira é o mundo das representações comuns, ou da ideologia, em que as formas de consciência que surgem espontaneamente da práxis alienada. Kosik as chama de "pensamento comum" – não no sentido pejorativo, mas como a consciência que reproduz acriticamente as aparências. Explica que: "O mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento." 

Por fim, a reificação (Verdinglichung) onde os processos sociais que aparecem como coisas, as instituições, relações sociais e produtos humanos parecem ter existência independente de seus criadores, por exemplo, o dinheiro, que aparece como coisa em si, não como relação social; ou as burocracias que parecem "máquinas" impessoais. 

Kosik apresenta estas dimensões como articuladas dialeticamente: A práxis fetichizada (2) produz objetos fixados (4). Estes objetos aparecem como fenômenos superficiais (1), que, por sua vez, geram representações comuns (3), que, por sua vez, legitimam e reproduzem a práxis fetichizada (2). Formando assim um círculo de alienação que se auto perpetua. 

Kosik não está simplesmente descrevendo quatro "erros" do pensamento, mas quatro dimensões estruturais de uma realidade social alienada. A pseudoconcreticidade é ontológica, porque refere-se ao modo de ser da realidade social e do ser social. É epistemológica, já que condiciona nossas formas de conhecer a imediaticidade dos fenômenos e das coisas tais quais elas se apresentam, ou seja, sem revelar a essência que essa oculta. E é de práxis, pois é produzida e reproduzida pela atividade humana, pois segundo Kosik "O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é o duplo sentido."

Kosik insiste que a pseudoconcreticidade não é um erro do pensamento, mas tem raízes na práxis histórica concreta: "A práxis de que se trata neste contexto é historicamente determinada e unilateral, é a práxis fragmentária dos indivíduos, baseada na divisão do trabalho, na divisão da sociedade em classes e na hierarquia de posições sociais que sobre ela se ergue." A práxis utilitária cotidiana gera uma forma específica de consciência – o "pensamento comum" – que reproduz a pseudoconcreticidade, segundo Kosik: "A práxis utilitária cotidiana cria 'o pensamento comum' – em que são captados tanto a familiaridade com as coisas e o aspecto superficial das coisas quanto a técnica de tratamento das coisas – como forma de seu movimento e de sua existência."

A Cotidianidade como Solo da Alienação: A Gênese Social da Pseudoconcreticidade em Karel Kosik

A análise de Karel Kosik sobre a pseudoconcreticidade encontra seu fundamento mais profundo na compreensão da cotidianidade como solo fértil onde a alienação social germina e se reproduz. Para o filósofo tcheco, a cotidianidade não representa simplesmente o conjunto de atividades rotineiras que compõem o dia a dia, mas constitui uma estrutura específica de existência social que gera e sustenta o mundo das aparências. É nesse espaço aparentemente trivial da vida quotidiana que se consolidam os mecanismos de reificação que caracterizam a pseudoconcreticidade.

Kosik descreve a cotidianidade como "a noite da desatenção, da mecanicidade e da institutividade, ou então como mundo da familiaridade". Esta metáfora da "noite" revela o caráter obscuro e não-reflexivo que marca a existência cotidiana alienada. Na cotidianidade, as ações humanas transformam-se em gestos automáticos, repetitivos e não-conscientes, onde a relação com o mundo perde seu caráter problemático e questionador. O que era historicamente construído e socialmente determinado aparece como natural e óbvio, criando uma espécie de "segunda natureza" que encobre as verdadeiras relações sociais.

A cotidianidade opera através de um processo de naturalização do social que constitui o núcleo da pseudoconcreticidade. As relações sociais historicamente determinadas - como a divisão de classes, as hierarquias de poder, as estruturas de dominação - apresentam-se como se fossem fenômenos naturais, imutáveis e eternos. Esta naturalização não é um simples erro cognitivo, mas um efeito necessário da própria estrutura da práxis cotidiana alienada. O trabalhador que executa diariamente as mesmas tarefas fragmentadas, sem compreender o processo produtivo total, não está apenas realizando um trabalho: está reproduzindo, através de sua atividade prática, uma determinada forma de relação com a realidade que impede o desvelamento das essências.

Outro mecanismo fundamental é o que poderíamos chamar de "familiarização do estranhamento". Kosik observa que "na cotidianidade a atividade e o modo de viver se transformam em um instintivo, subconsciente e inconsciente, irrefletido mecanismo de ação e de vida". O que é essencialmente estranho e alienado - como a transformação da atividade humana em mercadoria ou a conversão das relações sociais em relações entre coisas - torna-se familiar, íntimo, aceito como "normal". Esta familiaridade com o próprio estranhamento constitui uma das formas mais eficazes de sustentação da ordem social alienada.

A fragmentação da experiência na vida cotidiana completa este quadro de geração da pseudoconcreticidade. Na sociedade capitalista desenvolvida, a cotidianidade aparece como um conjunto desconexo de fenômenos e atividades sem unidade aparente. O indivíduo move-se entre esferas separadas - trabalho, família, consumo, lazer - sem perceber as conexões essenciais que unificam estas diferentes dimensões da vida social. Esta fragmentação impede a compreensão da totalidade concreta e reforça a aparência de que a realidade social é simplesmente um aglomerado de fatos e eventos desconexos.

Kosik enfatiza que a cotidianidade não é apenas o espaço onde a pseudoconcreticidade se manifesta, mas o terreno onde ela é ativamente produzida e reproduzida. Através da "práxis utilitária cotidiana", os homens não apenas se adaptam ao mundo reificado, mas o recriam constantemente através de suas ações. Esta práxis utilitária, orientada para a manipulação imediata de coisas e pessoas, gera correspondentemente uma forma específica de consciência - o "pensamento comum" - que capta a realidade apenas em sua superficialidade fenomênica.

Porém, Kosik não vê a cotidianidade apenas como puro obstáculo à emancipação. Ela contém uma ambiguidade fundamental: se por um lado é o solo da alienação, por outro constitui o ponto de partida necessário para qualquer transformação real. A análise da vida cotidiana oferece, "em certa medida, a via de acesso à compreensão e à descrição da realidade". A superação da pseudoconcreticidade exige portanto não a fuga da cotidianidade, mas sua transformação radical através de uma práxis que rompa com o utilitarismo e a imediatidade.

Esta compreensão da cotidianidade como solo da alienação mantém extraordinária atualidade. Nas sociedades contemporâneas, onde a vida cotidiana é cada vez mais mediada por tecnologias digitais e submetida à lógica do consumo, os mecanismos descritos por Kosik adquirem novas e mais sofisticadas formas. A naturalização das desigualdades, a familiarização com formas sutis de controle, e a fragmentação da experiência atingem níveis inéditos, tornando mais urgente do que nunca a tarefa de desvelar a pseudoconcreticidade que habita o coração do nosso cotidiano.