Nos capítulos anteriores, Marx já havia mostrado que:
O lucro (ou mais-valor) não pode surgir da troca (porque nela se trocam equivalentes);
Tampouco pode surgir do capital constante (as máquinas não criam valor, apenas o transferem).
Logo, a valorização do capital só é possível se o capitalista encontrar uma mercadoria especial cujo valor de uso consista
“Para que o dinheiro se transforme em capital, é preciso que o possuidor de dinheiro encontre, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso possua a propriedade singular de ser fonte de valor.” (O Capital, Livro I, cap. 6)
Essa mercadoria é a força de trabalho humana. A força de trabalho é definida por Marx como:
“O conjunto das capacidades físicas e intelectuais existentes no corpo e na personalidade viva de um homem e que ele põe em ação toda vez que produz valores de uso.” (O Capital, I, 6)
Em outras palavras, é a capacidade humana de trabalhar, o “trabalho em potência”.
Mas para que a força de trabalho possa ser mercadoria, é preciso que duas condições históricas estejam dadas:
O trabalhador deve ser livre juridicamente, capaz de vender sua força de trabalho como propriedade sua.
Ele não é escravo, servo ou propriedade de outro — é um sujeito legal igual ao capitalista no contrato de compra e venda.
Esse mesmo trabalhador deve estar livre dos meios de produção, isto é, sem terra, sem ferramentas, sem capital.Sua única mercadoria é a força de trabalho; para sobreviver, ele precisa vendê-la. Essa é a famosa “dupla liberdade” de que fala Marx:
“O trabalhador é livre no duplo sentido: livre como pessoa, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e, por outro lado, livre de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho.” (O Capital, I, 6)
3. O valor da força de trabalho
Como toda mercadoria, a força de trabalho tem:
Valor de uso → a capacidade de realizar trabalho, de criar valor.
Valor de troca → o custo de sua reprodução, isto é, o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir os bens que o trabalhador consome para viver e manter sua capacidade de trabalhar.
O valor da força de trabalho é, portanto, determinado pelo valor dos meios de subsistência necessários à sua manutenção e à de sua família.
Exemplo:
Se o trabalhador precisa de 4 horas de trabalho social médio para obter alimentação, moradia, transporte e outros bens, então o valor diário de sua força de trabalho equivale a 4 horas de trabalho socialmente necessário.
“O valor da força de trabalho é determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzir os meios de subsistência do trabalhador.” (O Capital, I, 6)
4. O uso da força de trabalho: a fonte do mais-valor
Quando o capitalista compra a força de trabalho, ele não compra o trabalho em si (que ainda não existe), mas o direito de usar essa força durante um certo tempo.
O uso da força de trabalho é trabalho vivo — e, ao ser utilizado, cria valor novo.
Durante a jornada:
O trabalhador produz valor suficiente para cobrir seu salário (reprodução do valor da força de trabalho);
Mas continua trabalhando além desse tempo, criando valor excedente (sobretrabalho).
Esse excedente é o mais-valor (ou mais-valia) — a base de todo lucro capitalista.
“O valor de uso da força de trabalho é o próprio trabalho, e o trabalho é a única fonte de valor. Portanto, o consumo dessa mercadoria produz mais-valor para o comprador.” (O Capital, I, 6)
5. O contrato e a aparência de igualdade
No ato de compra e venda da força de trabalho, capitalista e trabalhador aparecem como sujeitos iguais perante a lei:
O capitalista compra uma mercadoria;
O trabalhador vende uma mercadoria (sua força de trabalho);
Ambos trocam equivalentes.
Contudo, essa igualdade é apenas formal.
A exploração ocorre no uso da mercadoria, não no contrato.
David Harvey observa:
“O contrato entre capital e trabalho é, na aparência, uma troca entre iguais, mas no conteúdo é a apropriação do tempo de trabalho não pago. A exploração está oculta na própria forma do contrato.” (Para Entender O Capital, p. 83)
Essa aparência jurídica — de liberdade e igualdade — é a base do fetichismo das relações capitalistas: as relações sociais de exploração assumem a forma de relações de mercado entre pessoas livres.
6. O capital como relação social
O Capítulo 6 conclui mostrando que o capital não é uma coisa (dinheiro, fábrica, máquina), mas uma relação social mediada pela compra e venda da força de trabalho.
“O capital é uma relação social de produção, uma relação histórica que põe frente a frente o proprietário dos meios de produção e o trabalhador livre.” (O Capital, I, 6)
O dinheiro se torna capital apenas quando compra a força de trabalho — isto é, quando comanda o trabalho vivo.
Essa compra marca o início do processo de subsunção do trabalho ao capital: o trabalhador entra na fábrica como sujeito jurídico livre, mas ali se transforma em instrumento de valorização do capital.
Conclusão: o nascimento da exploração moderna
O Capítulo 6 de O Capital marca a passagem da circulação à produção.
É o momento em que Marx demonstra como o dinheiro se converte em capital e como a liberdade jurídica moderna esconde uma nova forma de coerção econômica.
A mercadoria força de trabalho é a chave da acumulação capitalista:
Ela é comprada por seu valor,
Mas, ao ser usada, produz mais valor do que custa.
A partir daqui, Marx pode desenvolver nos capítulos seguintes (7 a 9) as formas concretas de extração de mais-valia — absoluta (prolongamento da jornada de trabalho) e relativa (aumento da produtividade).
Como resume Harvey:
“A descoberta de Marx é que o capital não rouba, mas compra. E é justamente nesse ato legal de compra e venda que reside a essência da exploração capitalista.” (Para Entender O Capital, p. 84)
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