terça-feira, outubro 28, 2025

A Autonegação do Valor: Trabalho Vivo, Automação e a Crise da Lei do Valor em Marx

 


O paradoxo do progresso capitalista

O capitalismo, observa Marx, é o primeiro modo de produção que transforma incessantemente sua própria base técnica.
Ao elevar a produtividade do trabalho — mediante ciência, maquinaria e tecnologia —, ele não apenas cria riqueza material, mas mina as condições de sua própria valorização.
Esse paradoxo, formulado de modo seminal no chamado Fragmento das Máquinas dos Grundrisse (1857-1858), é a expressão mais avançada da contradição entre trabalho vivo e trabalho morto.

“O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o conhecimento social geral, o saber, se tornou força produtiva imediata.” (Grundrisse, Fragmento das Máquinas)

Aqui, Marx antecipa o núcleo de uma crise estrutural: o capital busca libertar-se do trabalho humano, mas é o trabalho humano o único criador de valor.
Quanto mais o capital triunfa tecnicamente, mais enfraquece economicamente. É essa autonegação do valor que define o limite histórico do capitalismo.

Trabalho vivo e capital fixo: a subordinação do saber ao valor

No Livro I de O Capital, Marx distingue trabalho vivo (atividade presente que cria valor novo) e trabalho morto (valor acumulado em máquinas, edifícios, matérias-primas).
No Fragmento das Máquinas, essa distinção se torna histórica e qualitativa: o trabalho morto incorpora o conhecimento coletivo, o que Marx chama de General Intellect — a inteligência social objetivada no capital fixo.

A máquina, portanto, não é mero instrumento; ela é a cristalização de trabalho passado, ciência e cooperação social.
O capital incorpora a ciência como força produtiva, mas mantém sua subordinação à lógica do valor: o saber social, que poderia emancipar o homem do trabalho forçado, é capturado como instrumento de exploração.

“No capital fixo está objetivado o saber científico, o trabalho intelectual coletivo da humanidade, transformado em potência do capital sobre o trabalhador.” (Grundrisse)

David Harvey interpreta esse ponto como a internalização do trabalho coletivo no próprio capital:

“O capital converte o conhecimento, a ciência e a cooperação social em componentes de sua própria maquinaria, reduzindo o trabalhador a apêndice de um processo que ele mesmo criou.” (Para Entender O Capital, p. 92)

A crise da lei do valor: produtividade e desvalorização

A lei do valor afirma que o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção.
Mas se as máquinas substituem o trabalho humano, o tempo de trabalho vivo por unidade de produto diminui — e, com ele, o valor da mercadoria.
O capital, portanto, aumenta a riqueza material enquanto reduz a substância do valor.

Marx formula a contradição com precisão dialética:

“Na medida em que o tempo de trabalho — a simples quantidade de trabalho — é posto pelo capital como a única medida da riqueza, o capital contradiz a si mesmo. O trabalho humano deixa de ser a grande fonte da riqueza.” (Grundrisse)

O aumento da produtividade expulsa o trabalho vivo, reduzindo a massa de mais-valor em relação ao capital investido — o que Marx chamará, no Livro III, de tendência à queda da taxa de lucro.
A automação, portanto, não é apenas avanço técnico, mas contradição interna da valorização:
quanto mais o capital se desenvolve, menos pode se valorizar.

O fetichismo técnico: o trabalho morto como sujeito social

O capitalismo produz não apenas mercadorias, mas formas sociais de percepção.
A máquina aparece como “força produtiva autônoma”, como se o valor emanasse da técnica, e não do trabalho.
É o fetichismo técnico, que substitui o culto da mercadoria pelo culto da tecnologia.

Marx antecipa essa inversão:

“O instrumento de trabalho se ergue diante do trabalhador como capital, como potência autônoma que o domina.” (Grundrisse)

Harvey observa que, na fase contemporânea, essa inversão se radicaliza:

“O capital, na forma de tecnologia e finanças, tornou-se quase inteiramente autônomo. O trabalho vivo é subjugado por fluxos de informação e algoritmos que funcionam como o novo capital fixo.” (Os Limites do Capital, p. 312)

O trabalho morto — o passado — domina o presente.
O capital se apresenta como “valor em movimento”, mas é, de fato, trabalho morto que suga o trabalho vivo:

“O capital é trabalho morto que, como um vampiro, vive apenas sugando o trabalho vivo.” (O Capital, Livro I, cap. 10)

O general intellect e a potencial emancipação

No Fragmento das Máquinas, Marx identifica um momento potencialmente emancipador:
quando o desenvolvimento das forças produtivas atinge tal grau que o tempo de trabalho deixa de ser a medida da riqueza.
O conhecimento social torna-se a força produtiva dominante, e o trabalho humano direto tende a ser marginal.

Nesse ponto, a lei do valor entra em crise estrutural.
O capitalismo, ao automatizar a produção, cria as condições materiais para uma sociedade pós-mercadoria, mas impede sua realização, pois permanece preso à necessidade de extrair mais-valor.

“A medida da riqueza deixa de ser o tempo de trabalho e passa a ser o tempo disponível.” (Grundrisse)

Harvey comenta:

“O capital cava sua própria sepultura. Ao socializar o saber e automatizar o trabalho, cria as condições materiais de uma sociedade onde o valor não teria mais função.” (Para Entender O Capital, p. 95)

Moishé Postone, em Time, Labor and Social Domination, interpreta esse movimento como autodestruição temporal do capital: quanto mais o trabalho é reduzido a tempo abstrato, mais o próprio tempo de trabalho se torna obsoleto como fundamento da riqueza.

6. Dinheiro, tempo e abstração: a forma final do trabalho alienado

O dinheiro é a forma acabada da abstração do trabalho. Ele representa o tempo de trabalho humano socialmente validado e funciona como equivalente universal do valor. Na medida em que o capital reduz o trabalho vivo, o dinheiro torna-se cada vez mais desvinculado de sua base material, e a economia se torna financeirizada — o capital fictício. Marx já antecipava essa tendência:

“O capital-dinheiro adquire um modo de existência que parece independente da produção real, como se o valor se valorizasse por si mesmo.” (O Capital, Livro III, cap. 24)

O que se autonomiza não é o dinheiro em si, mas o trabalho morto cristalizado que perdeu referência ao trabalho vivo. A financeirização contemporânea é, portanto, o estágio supremo do fetichismo do valor: o capital em sua forma puramente abstrata. Harvey descreve esse fenômeno como “a autonomização do valor em movimento”:

“O dinheiro se move agora à velocidade da luz, como pura abstração. Mas, em seu âmago, continua dependendo do trabalho humano, que se torna cada vez mais invisível.” (Os Limites do Capital, p. 340)

O limite histórico do capital

A contradição entre trabalho vivo e trabalho morto é a contradição fundamental do capitalismo.
O capital depende do trabalho vivo para se valorizar, mas sua lógica o impulsiona a substituí-lo por trabalho morto.
O resultado é uma tendência autodestrutiva: o capital dissolve a base da lei do valor — o tempo de trabalho — e, portanto, o próprio princípio de sua existência.

O dinheiro, forma suprema do valor, torna-se também o símbolo da crise: ele já não mede trabalho social, mas expectativas e especulações sobre trabalho futuro.
A abstração do valor atinge seu limite quando o trabalho vivo deixa de ser sua substância.

Como conclui Marx:

“O capital se torna uma contradição em processo, porque tende a reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, enquanto o tempo de trabalho continua sendo a única medida e fonte de riqueza.” (Grundrisse)

E Harvey completa:

“O capitalismo não perecerá por falta de riqueza, mas por excesso dela — porque destrói a substância de seu próprio valor.” (Para Entender O Capital, p. 98)

O destino do capital é, portanto, sua autonegação: a transformação do trabalho em puro saber social torna insustentável a forma-valor.
Quando o trabalho vivo deixa de ser a medida da riqueza, o dinheiro perde sentido, e o valor — essência do capitalismo — se dissolve.

Nesse ponto, a emancipação deixa de ser utopia moral e se torna necessidade histórica: a transição de uma sociedade baseada na exploração do tempo de trabalho para uma sociedade fundada no tempo livre e na cooperação consciente — o comunismo como superação da forma-valor.

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