segunda-feira, novembro 03, 2025

O Processo de Trabalho: a Produção de Valores de Karl Marx

No início do Capítulo 5 de O Capital, Karl Marx analisa o que chama de “o processo de trabalho” — isto é, a atividade humana concreta que transforma a natureza para produzir valores de uso. Antes de ser um conceito econômico, o processo de trabalho é uma categoria antropológica e histórica: ele expressa o modo pelo qual o ser humano se relaciona com o mundo material.

A explicação marxiana mostra que o trabalho é o ponto de partida da riqueza material, mas que, sob o capitalismo, essa atividade assume uma forma social particular: ela se torna meio de valorização do capital. Portanto, compreender o processo de trabalho é compreender como o capital apropria-se da capacidade criadora humana para produzir mercadorias.

2. O que é o processo de trabalho

Marx define o processo de trabalho como:

“O processo de trabalho, considerado independentemente de qualquer forma social, é um processo entre o homem e a natureza, no qual o homem medeia, regula e controla, mediante sua própria ação, o metabolismo entre si e a natureza.” (O Capital, Livro I, cap. 5)

Todo processo de trabalho, em qualquer sociedade, envolve três elementos essenciais:

  1. A atividade humana – o próprio trabalho, isto é, o esforço físico e intelectual do homem para produzir.

  2. O objeto de trabalho – a matéria sobre a qual o trabalho atua (pode ser a natureza ou algo já transformado).

  3. Os meios de trabalho – instrumentos, ferramentas e máquinas que permitem transformar o objeto em produto.

Esses três elementos constituem a base da produção de valores de uso, ou seja, coisas úteis que satisfazem necessidades humanas. O valor de uso é, portanto, a dimensão material e concreta do produto do trabalho.

3. O caráter universal e histórico do processo de trabalho

O processo de trabalho, enquanto mediação entre o homem e a natureza, existe em todas as sociedades.
Trabalhar é transformar o mundo exterior para satisfazer necessidades vitais; nesse sentido, é uma condição eterna da vida humana.

Porém, a forma social sob a qual o trabalho se realiza muda historicamente.
Nas sociedades pré-capitalistas (comunidades primitivas, escravismo, feudalismo), o produto do trabalho pertence a outros ou à coletividade. No capitalismo, o produto do trabalho pertence ao capitalista, porque o trabalhador não possui os meios de produção e é obrigado a vender sua força de trabalho.

Assim, o mesmo processo de trabalho natural torna-se, sob o capitalismo, um processo social de exploração.

4. O trabalho como criador de valor

No plano técnico, o trabalho cria valores de uso.
Mas, no plano social capitalista, ele cria também valor — isto é, tempo de trabalho humano socialmente necessário cristalizado na mercadoria.

A diferença fundamental é que:

  • O valor de uso depende da utilidade do objeto;

  • O valor depende da quantidade de trabalho abstrato que o objeto contém.

A atividade concreta do trabalhador (trabalho útil) transforma matérias e cria utilidades; ao mesmo tempo, o gasto de energia humana (trabalho abstrato) cria valor.
O processo de trabalho, portanto, é também um processo de valorização, quando inserido nas relações capitalistas de produção.

5. O capital e a apropriação do processo de trabalho

No capitalismo, o processo de trabalho é subsumido ao capital, ou seja, transformado em instrumento de valorização.
O capitalista compra duas mercadorias:

  • Meios de produção (máquinas, matérias-primas) → que apenas transferem valor;

  • Força de trabalho → que cria valor novo.

Ao usar a força de trabalho, o capitalista não apenas repõe o valor adiantado em salário, mas obtém mais valor do que investiu — o mais-valor (ou mais-valia).
Assim, o processo de trabalho, que em si é criador de valores de uso, torna-se meio de produção de mais-valor.

Nos termos didáticos de Para Entender O Capital, o processo é explicado como um “duplo movimento”:

“O processo de trabalho é o ponto de partida da produção de valores de uso. Mas, sob o capital, esse mesmo processo converte-se em processo de valorização: o trabalhador cria mais valor do que o necessário para sua própria reprodução.”

6. A diferença entre processo de trabalho e processo de valorização

Marx distingue claramente as duas dimensões:

  • Processo de trabalho → cria valores de uso (aspecto material da produção).

  • Processo de valorização → cria valor e mais-valor (aspecto social da produção capitalista).

A confusão entre esses dois planos é a base da ideologia burguesa:
os economistas clássicos atribuíam à “produtividade” das máquinas ou do capital o poder de criar valor, quando, na verdade, apenas o trabalho vivo o faz.

Como resume Para Entender O Capital:

“O capitalista parece produzir coisas úteis, mas o que realmente produz é valor. O objetivo do capital não é a utilidade das mercadorias, mas a valorização do valor.”


8. Conclusão

O processo de trabalho é, para Marx, a base sobre a qual se edifica toda a economia capitalista.
Ele é o momento em que a capacidade humana de transformar o mundo é posta a serviço da acumulação de capital.
Produzir valores de uso é o conteúdo material do trabalho; produzir valor e mais-valor é o seu conteúdo social no capitalismo.

A genialidade de Marx está em mostrar que o trabalho humano, que é a fonte da riqueza social, torna-se, no capitalismo, o meio de sua própria alienação:
quanto mais o trabalhador produz, mais valor ele gera — e mais distante fica do produto do seu trabalho.

Assim, compreender o processo de trabalho é compreender o próprio núcleo da contradição capitalista: a vida criadora transformada em meio de valorização do valor.


O problema de fundo: de onde vem o lucro “honesto”?


Nos capítulos anteriores, Marx já havia mostrado que:

  • O lucro (ou mais-valor) não pode surgir da troca (porque nela se trocam equivalentes);

  • Tampouco pode surgir do capital constante (as máquinas não criam valor, apenas o transferem).

Logo, a valorização do capital só é possível se o capitalista encontrar uma mercadoria especial cujo valor de uso consista

“Para que o dinheiro se transforme em capital, é preciso que o possuidor de dinheiro encontre, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso possua a propriedade singular de ser fonte de valor.” (O Capital, Livro I, cap. 6)

Essa mercadoria é a força de trabalho humana. A força de trabalho é definida por Marx como:

“O conjunto das capacidades físicas e intelectuais existentes no corpo e na personalidade viva de um homem e que ele põe em ação toda vez que produz valores de uso.” (O Capital, I, 6)

Em outras palavras, é a capacidade humana de trabalhar, o “trabalho em potência”.

Mas para que a força de trabalho possa ser mercadoria, é preciso que duas condições históricas estejam dadas:

O trabalhador deve ser livre juridicamente, capaz de vender sua força de trabalho como propriedade sua.
Ele não é escravo, servo ou propriedade de outro — é um sujeito legal igual ao capitalista no contrato de compra e venda.

Esse mesmo trabalhador deve estar livre dos meios de produção, isto é, sem terra, sem ferramentas, sem capital.Sua única mercadoria é a força de trabalho; para sobreviver, ele precisa vendê-la. Essa é a famosa “dupla liberdade” de que fala Marx:

“O trabalhador é livre no duplo sentido: livre como pessoa, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e, por outro lado, livre de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho.” (O Capital, I, 6)


3. O valor da força de trabalho

Como toda mercadoria, a força de trabalho tem:

  • Valor de uso → a capacidade de realizar trabalho, de criar valor.

  • Valor de troca → o custo de sua reprodução, isto é, o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir os bens que o trabalhador consome para viver e manter sua capacidade de trabalhar.

O valor da força de trabalho é, portanto, determinado pelo valor dos meios de subsistência necessários à sua manutenção e à de sua família.

Exemplo:
Se o trabalhador precisa de 4 horas de trabalho social médio para obter alimentação, moradia, transporte e outros bens, então o valor diário de sua força de trabalho equivale a 4 horas de trabalho socialmente necessário.

“O valor da força de trabalho é determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzir os meios de subsistência do trabalhador.” (O Capital, I, 6)


4. O uso da força de trabalho: a fonte do mais-valor

Quando o capitalista compra a força de trabalho, ele não compra o trabalho em si (que ainda não existe), mas o direito de usar essa força durante um certo tempo.
O uso da força de trabalho é trabalho vivo — e, ao ser utilizado, cria valor novo.

Durante a jornada:

  • O trabalhador produz valor suficiente para cobrir seu salário (reprodução do valor da força de trabalho);

  • Mas continua trabalhando além desse tempo, criando valor excedente (sobretrabalho).

Esse excedente é o mais-valor (ou mais-valia) — a base de todo lucro capitalista.

“O valor de uso da força de trabalho é o próprio trabalho, e o trabalho é a única fonte de valor. Portanto, o consumo dessa mercadoria produz mais-valor para o comprador.” (O Capital, I, 6)


5. O contrato e a aparência de igualdade

No ato de compra e venda da força de trabalho, capitalista e trabalhador aparecem como sujeitos iguais perante a lei:

  • O capitalista compra uma mercadoria;

  • O trabalhador vende uma mercadoria (sua força de trabalho);

  • Ambos trocam equivalentes.

Contudo, essa igualdade é apenas formal.
A exploração ocorre no uso da mercadoria, não no contrato.

David Harvey observa:

“O contrato entre capital e trabalho é, na aparência, uma troca entre iguais, mas no conteúdo é a apropriação do tempo de trabalho não pago. A exploração está oculta na própria forma do contrato.” (Para Entender O Capital, p. 83)

Essa aparência jurídica — de liberdade e igualdade — é a base do fetichismo das relações capitalistas: as relações sociais de exploração assumem a forma de relações de mercado entre pessoas livres.

6. O capital como relação social

O Capítulo 6 conclui mostrando que o capital não é uma coisa (dinheiro, fábrica, máquina), mas uma relação social mediada pela compra e venda da força de trabalho.

“O capital é uma relação social de produção, uma relação histórica que põe frente a frente o proprietário dos meios de produção e o trabalhador livre.” (O Capital, I, 6)

O dinheiro se torna capital apenas quando compra a força de trabalho — isto é, quando comanda o trabalho vivo.
Essa compra marca o início do processo de subsunção do trabalho ao capital: o trabalhador entra na fábrica como sujeito jurídico livre, mas ali se transforma em instrumento de valorização do capital.

Conclusão: o nascimento da exploração moderna

O Capítulo 6 de O Capital marca a passagem da circulação à produção.
É o momento em que Marx demonstra como o dinheiro se converte em capital e como a liberdade jurídica moderna esconde uma nova forma de coerção econômica.

A mercadoria força de trabalho é a chave da acumulação capitalista:

  • Ela é comprada por seu valor,

  • Mas, ao ser usada, produz mais valor do que custa.

A partir daqui, Marx pode desenvolver nos capítulos seguintes (7 a 9) as formas concretas de extração de mais-valiaabsoluta (prolongamento da jornada de trabalho) e relativa (aumento da produtividade).

Como resume Harvey:

“A descoberta de Marx é que o capital não rouba, mas compra. E é justamente nesse ato legal de compra e venda que reside a essência da exploração capitalista.” (Para Entender O Capital, p. 84)



terça-feira, outubro 28, 2025

A Autonegação do Valor: Trabalho Vivo, Automação e a Crise da Lei do Valor em Marx

 


O paradoxo do progresso capitalista

O capitalismo, observa Marx, é o primeiro modo de produção que transforma incessantemente sua própria base técnica.
Ao elevar a produtividade do trabalho — mediante ciência, maquinaria e tecnologia —, ele não apenas cria riqueza material, mas mina as condições de sua própria valorização.
Esse paradoxo, formulado de modo seminal no chamado Fragmento das Máquinas dos Grundrisse (1857-1858), é a expressão mais avançada da contradição entre trabalho vivo e trabalho morto.

“O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o conhecimento social geral, o saber, se tornou força produtiva imediata.” (Grundrisse, Fragmento das Máquinas)

Aqui, Marx antecipa o núcleo de uma crise estrutural: o capital busca libertar-se do trabalho humano, mas é o trabalho humano o único criador de valor.
Quanto mais o capital triunfa tecnicamente, mais enfraquece economicamente. É essa autonegação do valor que define o limite histórico do capitalismo.

Trabalho vivo e capital fixo: a subordinação do saber ao valor

No Livro I de O Capital, Marx distingue trabalho vivo (atividade presente que cria valor novo) e trabalho morto (valor acumulado em máquinas, edifícios, matérias-primas).
No Fragmento das Máquinas, essa distinção se torna histórica e qualitativa: o trabalho morto incorpora o conhecimento coletivo, o que Marx chama de General Intellect — a inteligência social objetivada no capital fixo.

A máquina, portanto, não é mero instrumento; ela é a cristalização de trabalho passado, ciência e cooperação social.
O capital incorpora a ciência como força produtiva, mas mantém sua subordinação à lógica do valor: o saber social, que poderia emancipar o homem do trabalho forçado, é capturado como instrumento de exploração.

“No capital fixo está objetivado o saber científico, o trabalho intelectual coletivo da humanidade, transformado em potência do capital sobre o trabalhador.” (Grundrisse)

David Harvey interpreta esse ponto como a internalização do trabalho coletivo no próprio capital:

“O capital converte o conhecimento, a ciência e a cooperação social em componentes de sua própria maquinaria, reduzindo o trabalhador a apêndice de um processo que ele mesmo criou.” (Para Entender O Capital, p. 92)

A crise da lei do valor: produtividade e desvalorização

A lei do valor afirma que o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção.
Mas se as máquinas substituem o trabalho humano, o tempo de trabalho vivo por unidade de produto diminui — e, com ele, o valor da mercadoria.
O capital, portanto, aumenta a riqueza material enquanto reduz a substância do valor.

Marx formula a contradição com precisão dialética:

“Na medida em que o tempo de trabalho — a simples quantidade de trabalho — é posto pelo capital como a única medida da riqueza, o capital contradiz a si mesmo. O trabalho humano deixa de ser a grande fonte da riqueza.” (Grundrisse)

O aumento da produtividade expulsa o trabalho vivo, reduzindo a massa de mais-valor em relação ao capital investido — o que Marx chamará, no Livro III, de tendência à queda da taxa de lucro.
A automação, portanto, não é apenas avanço técnico, mas contradição interna da valorização:
quanto mais o capital se desenvolve, menos pode se valorizar.

O fetichismo técnico: o trabalho morto como sujeito social

O capitalismo produz não apenas mercadorias, mas formas sociais de percepção.
A máquina aparece como “força produtiva autônoma”, como se o valor emanasse da técnica, e não do trabalho.
É o fetichismo técnico, que substitui o culto da mercadoria pelo culto da tecnologia.

Marx antecipa essa inversão:

“O instrumento de trabalho se ergue diante do trabalhador como capital, como potência autônoma que o domina.” (Grundrisse)

Harvey observa que, na fase contemporânea, essa inversão se radicaliza:

“O capital, na forma de tecnologia e finanças, tornou-se quase inteiramente autônomo. O trabalho vivo é subjugado por fluxos de informação e algoritmos que funcionam como o novo capital fixo.” (Os Limites do Capital, p. 312)

O trabalho morto — o passado — domina o presente.
O capital se apresenta como “valor em movimento”, mas é, de fato, trabalho morto que suga o trabalho vivo:

“O capital é trabalho morto que, como um vampiro, vive apenas sugando o trabalho vivo.” (O Capital, Livro I, cap. 10)

O general intellect e a potencial emancipação

No Fragmento das Máquinas, Marx identifica um momento potencialmente emancipador:
quando o desenvolvimento das forças produtivas atinge tal grau que o tempo de trabalho deixa de ser a medida da riqueza.
O conhecimento social torna-se a força produtiva dominante, e o trabalho humano direto tende a ser marginal.

Nesse ponto, a lei do valor entra em crise estrutural.
O capitalismo, ao automatizar a produção, cria as condições materiais para uma sociedade pós-mercadoria, mas impede sua realização, pois permanece preso à necessidade de extrair mais-valor.

“A medida da riqueza deixa de ser o tempo de trabalho e passa a ser o tempo disponível.” (Grundrisse)

Harvey comenta:

“O capital cava sua própria sepultura. Ao socializar o saber e automatizar o trabalho, cria as condições materiais de uma sociedade onde o valor não teria mais função.” (Para Entender O Capital, p. 95)

Moishé Postone, em Time, Labor and Social Domination, interpreta esse movimento como autodestruição temporal do capital: quanto mais o trabalho é reduzido a tempo abstrato, mais o próprio tempo de trabalho se torna obsoleto como fundamento da riqueza.

6. Dinheiro, tempo e abstração: a forma final do trabalho alienado

O dinheiro é a forma acabada da abstração do trabalho. Ele representa o tempo de trabalho humano socialmente validado e funciona como equivalente universal do valor. Na medida em que o capital reduz o trabalho vivo, o dinheiro torna-se cada vez mais desvinculado de sua base material, e a economia se torna financeirizada — o capital fictício. Marx já antecipava essa tendência:

“O capital-dinheiro adquire um modo de existência que parece independente da produção real, como se o valor se valorizasse por si mesmo.” (O Capital, Livro III, cap. 24)

O que se autonomiza não é o dinheiro em si, mas o trabalho morto cristalizado que perdeu referência ao trabalho vivo. A financeirização contemporânea é, portanto, o estágio supremo do fetichismo do valor: o capital em sua forma puramente abstrata. Harvey descreve esse fenômeno como “a autonomização do valor em movimento”:

“O dinheiro se move agora à velocidade da luz, como pura abstração. Mas, em seu âmago, continua dependendo do trabalho humano, que se torna cada vez mais invisível.” (Os Limites do Capital, p. 340)

O limite histórico do capital

A contradição entre trabalho vivo e trabalho morto é a contradição fundamental do capitalismo.
O capital depende do trabalho vivo para se valorizar, mas sua lógica o impulsiona a substituí-lo por trabalho morto.
O resultado é uma tendência autodestrutiva: o capital dissolve a base da lei do valor — o tempo de trabalho — e, portanto, o próprio princípio de sua existência.

O dinheiro, forma suprema do valor, torna-se também o símbolo da crise: ele já não mede trabalho social, mas expectativas e especulações sobre trabalho futuro.
A abstração do valor atinge seu limite quando o trabalho vivo deixa de ser sua substância.

Como conclui Marx:

“O capital se torna uma contradição em processo, porque tende a reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, enquanto o tempo de trabalho continua sendo a única medida e fonte de riqueza.” (Grundrisse)

E Harvey completa:

“O capitalismo não perecerá por falta de riqueza, mas por excesso dela — porque destrói a substância de seu próprio valor.” (Para Entender O Capital, p. 98)

O destino do capital é, portanto, sua autonegação: a transformação do trabalho em puro saber social torna insustentável a forma-valor.
Quando o trabalho vivo deixa de ser a medida da riqueza, o dinheiro perde sentido, e o valor — essência do capitalismo — se dissolve.

Nesse ponto, a emancipação deixa de ser utopia moral e se torna necessidade histórica: a transição de uma sociedade baseada na exploração do tempo de trabalho para uma sociedade fundada no tempo livre e na cooperação consciente — o comunismo como superação da forma-valor.

O Dinheiro e a Dialética do Trabalho em Marx: Relações entre Trabalho Vivo, Trabalho Morto, Valor e Mais-Valor

 


A crítica de Karl Marx à economia política atinge seu núcleo conceitual quando ele revela que o capitalismo é, essencialmente, um sistema de valorização do valor.
Nele, o dinheiro não é apenas um meio de troca, mas o ponto de partida e de chegada de um processo social no qual o trabalho humano — vivo — é consumido para gerar mais-valor e manter o movimento incessante de acumulação.

Como sintetiza David Harvey:

“O capital é um processo que começa com dinheiro, se materializa no trabalho e termina com mais dinheiro. É a metamorfose do trabalho humano em valor.” (Para Entender O Capital, p. 85)

Este artigo analisa como os conceitos de trabalho vivo, trabalho morto, valor, mais-valor e dinheiro se articulam no pensamento de Marx, evidenciando a lógica interna do capital e o papel do trabalho como fundamento de toda a valorização.

Trabalho vivo e trabalho morto: a dialética da produção

No processo produtivo, Marx distingue dois tipos de trabalho:

  • Trabalho vivo: a atividade presente do trabalhador, criadora de valor novo.

  • Trabalho morto: o trabalho passado, incorporado em meios de produção (máquinas, matérias-primas, edifícios, etc.).

O trabalho vivo põe em movimento o trabalho morto e lhe dá nova vida, ao mesmo tempo que é por ele controlado e limitado.
Essa relação expressa uma contradição central do capitalismo: o capital depende do trabalho vivo para se valorizar, mas busca constantemente reduzi-lo e substituí-lo por máquinas.

“O trabalho passado, incorporado nos meios de produção, só reaparece no produto. O trabalho vivo, ao contrário, cria valor novo e reanima o trabalho morto.” (O Capital, Livro I, cap. 7)

Harvey observa que, para Marx, essa relação não é apenas técnica, mas social:

“O trabalho morto domina o trabalho vivo porque o capital, como valor acumulado, comanda o processo produtivo. O trabalhador se torna apêndice da máquina que ele mesmo criou.” (Para Entender O Capital, p. 90)

O valor e a substância do trabalho

O valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção.
Esse trabalho é abstrato — isto é, não importa o tipo concreto de atividade, mas a quantidade média de esforço humano socialmente reconhecida.
Assim, o valor não é uma qualidade material, mas uma relação social mediada por coisas.

“A substância do valor é o trabalho humano abstrato, e sua medida é o tempo de trabalho socialmente necessário.” (O Capital, Livro I, cap. 1)

O trabalho morto transfere ao produto o valor que já contém; o trabalho vivo, por sua vez, acrescenta valor novo.
A combinação de ambos — a unidade contraditória entre o passado e o presente — constitui o processo de valorização.

 O mais-valor: o trabalho vivo como fonte da valorização

A peculiaridade do capitalismo está em que o capitalista compra, no mercado, uma mercadoria especial: a força de trabalho.
Seu valor é determinado pelo custo de sua reprodução (o salário), mas o uso dessa mercadoria cria valor superior ao que ela custa.

Durante a jornada de trabalho:

  • Uma parte do tempo o trabalhador reproduz o valor do salário (trabalho necessário).

  • Na outra parte, continua produzindo sem remuneração (sobretrabalho).

Esse excedente é o mais-valor, base do lucro capitalista.

“O valor de uso da força de trabalho consiste em criar valor, e até mais valor do que ela mesma possui.” (O Capital, Livro I, cap. 6)

David Harvey resume:

“O capital compra o direito de consumir o trabalho vivo e, nesse consumo, extrai o mais-valor. É o uso da força de trabalho que valoriza o capital.” (Para Entender O Capital, p. 81)

O dinheiro como forma social do valor

O dinheiro é a forma fenomênica do valor — sua expressão universal.
Ele surge como equivalente geral das mercadorias e, no capitalismo, converte-se em capital quando entra no ciclo D–M–D′ (dinheiro–mercadoria–mais dinheiro).

Esse movimento expressa a metamorfose do trabalho:

  1. D — o dinheiro é valor potencial, acumulado.

  2. M — ele compra força de trabalho e meios de produção.

  3. P (produção) — o trabalho vivo consome o trabalho morto e cria mais-valor.

  4. M′–D′ — a mercadoria é vendida e o valor se realiza novamente como dinheiro, agora ampliado.

“O capital é valor que se valoriza. O dinheiro, ao se transformar em capital, torna-se sujeito de um processo cujo fim é seu próprio aumento.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

O dinheiro é, portanto, a forma final do trabalho humano socialmente validado.
Ele representa o resultado do processo de exploração, convertendo o esforço humano em abstração monetária.

Harvey explica:

“O dinheiro parece gerar mais dinheiro, mas na verdade apenas reflete o processo social de extração de mais-valor do trabalho vivo. O dinheiro é o fetiche supremo do capital.” (Para Entender O Capital, p. 87)


A inversão fetichista: o domínio do trabalho morto sobre o vivo

O movimento do capital faz com que o trabalho morto (valor acumulado) apareça como a verdadeira fonte de riqueza, enquanto o trabalho vivo é reduzido a mero instrumento.
Essa inversão é o que Marx denomina fetichismo da produção capitalista: as coisas (máquinas, dinheiro, capital) parecem possuir poder próprio, enquanto o sujeito humano é objetificado.

“O capital é trabalho morto que, como um vampiro, vive apenas sugando o trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho suga.” (O Capital, Livro I, cap. 10)

Harvey reforça a atualidade dessa metáfora:

“O capital é o trabalho morto que domina o vivo. As máquinas, os algoritmos e o dinheiro funcionam como formas sociais que mascaram as relações humanas de exploração.” (Para Entender O Capital, p. 94)

A conexão entre trabalho vivo, trabalho morto, valor, mais-valor e dinheiro revela a essência dinâmica e contraditória do capitalismo.
O trabalho vivo é a única fonte criadora de valor, mas sua própria produtividade tende a reduzir sua participação direta na produção, substituindo-o por máquinas — trabalho morto.
Assim, quanto mais o capital busca se libertar do trabalho vivo, mais destrói a base de sua própria valorização.

O dinheiro, ao fim, é apenas a expressão abstrata desse processo: a forma em que o trabalho humano aparece como coisa, como poder autônomo.
A crítica de Marx, portanto, mostra que o capital não é um objeto nem uma soma de dinheiro, mas uma relação social mediada pelo dinheiro, sustentada pela exploração do trabalho vivo.

“O capital é valor em processo, valor que se valoriza, mas cuja vida depende do sangue do trabalho humano.” (O Capital, Livro I, cap. 4)

“O dinheiro é a aparência final do trabalho explorado — o espelho no qual o trabalho vivo não se reconhece.” (Harvey, Para Entender O Capital, p. 95)